Amanda Polato
Os gestores precisam estudar as leis para evitar equívocos ao misturar conteúdos e fé
Antes de começar a aula ou fazer a merenda, os alunos rezam um pai-nosso junto com a professora. Na Páscoa, evento que celebra, na crença cristã, a ressurreição de Jesus, pede-se que as crianças desenhem coelhos (animal que passou a ser usado como o símbolo da data). Sinais religiosos surgem em quase todas as escolas públicas apesar de, pela Constituição, o Estado brasileiro ser laico - ou seja, não está ligado a nenhuma crença. "Permitir que procedimentos como esses ocorram dentro do espaço de aprendizagem é um desrespeito à lei e às crianças cujas famílias seguem outros credos ou são atéias", diz Roseli Fischmann, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Metodista, em São Bernardo do Campo, na região metropolitana da capital paulista.
Perita da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para a Coalização de Cidades contra o Racismo e a Discriminação, responsável pelo capítulo sobre pluralidade cultural dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), coordenadora do grupo de pesquisa Discriminação, Preconceito e Estigma, vinculado à USP, e do Núcleo de Educação em Direitos Humanos, da Universidade Metodista e autora do livro Ensino Religioso em Escolas Públicas: Impactos sobre o Estado Laico, Roseli acredita que essas práticas vêm se intensificando no Brasil nos últimos anos. Na maioria das vezes, os educadores são promovidos por boas intenções. Porém o desconhecimento do princípio legal os leva a cometer irregularidades.
Nesta entrevista a NOVA ESCOLA GESTÃO ESCOLAR, ela fala sobre as leis que visão garantir que nenhum espaço público seja usado de maneira hostil aos sentimentos religiosos e como agir na escola para seguir a lei e respeitar todos os alunos. Roseli opina ainda sobre o acordo assinado pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva com o Vaticano que prevê a obrigatoriedade do "ensino religioso católico e de outras confissões religiosas" em todas as escolas públicas.
Como a religião está presente no cotidiano da escola pública?
Como a religião está presente no cotidiano da escola pública?
ROSELI FISCHMANN Ela aparece, sempre de forma irregular, das mais diversas maneiras: o crucifixo na parede, imagens de santos ou de Maria nos diversos ambientes, no ato de rezar antes da merenda e das aulas, na comemoração de datas religiosas. Alguns professores chegam a usar textos bíblicos como material pedagógico para o ensino da Língua Portuguesa ou para trabalhar conteúdos de outras disciplinas. É um equívoco chamar essa abordagem de "transversal" porque quem faz isso enxerta conteúdo de uma disciplina facultativa numa obrigatória.
Atitudes como essas podem ser consideradas desrespeitosas mesmo quando a maioria dos alunos é adepta da mesma religião?
ROSELI Não importa se a escola tem só um estudante de fé diferente (ou ateu) ou se 100% dos alunos e funcionários compartilham a mesma crença. A escola é um espaço público e deve estar preparada para receber quaisquer pessoas com o respeito devido.
Termos religiosos como "graças a Deus" e "nossa" (que vem de Nossa Senhora), são usados até por quem afirma não professar nenhuma fé. Não é isso que, de alguma forma, ocorre nas escolas?
ROSELI Há expressões que são culturais e as pessoas não param para pensar se estão dizendo algo com sentido religioso. Isso é observável também em outras línguas, como o gee, do inglês, pela inicial do nome da divindade (god). Porém o que se vê nas escolas públicas brasileiras é muito diferente. Dificilmente um ateu deixará de ser ateu porque disse "nossa". O que se faz lá fere a lei.
Com o aumento do número de evangélicos, as práticas dessa religião também aparecem nas escolas públicas?
ROSELI A grande presença no interior das escolas brasileiras ainda é a de práticas católicas. De outros grupos, o que existe muitas vezes é a manifestação de valores e atitudes, voltadas para garantir respeito à sua identidade religiosa, para se defender de tentativas de imposição, notadamente dos católicos.
Muitas escolas tratam de temas religiosos com os jovens alegando que isso ajuda a combater a violência.
ROSELI A religião não impede a violência. A ideia de que ela sempre faz bem é equivocada. Basta lembrar que grande parte das guerras teve origem em conflitos religiosos. Na escola, a violência deve ser combatida com o ensino ao respeito e ao reconhecimento da dignidade intrínseca a todos, não com o pensamento de que apenas as pessoas que acreditam na mesma divindade merecem consideração.
Por que misturar escola com religião é ilegal?
ROSELI No artigo 19 da Constituição, há dois incisos claros. O primeiro afirma ser vedado à União, aos estados, aos municípios e ao Distrito Federal "estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público". O outro proíbe "criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si". Ambos são os responsáveis pela definição do Estado laico, deixando-o imparcial e evitando privilegiar uma ou outra religião, para que não haja diferenças entre os brasileiros. Ora, se o Estado é laico, a escola pública - que é parte desse Estado - também deve sê-lo.
E as leis educacionais?
ROSELI Na própria Constituição, o artigo 210, parágrafo 1º, determina o ensino religioso "facultativo para o aluno, nos horários normais das escolas públicas de Ensino Fundamental", baseado na crença de que ele faz parte da "formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais", o que pode se considerar como a parte que enquadra na tal ressalva da "colaboração ao interesse público", citada na resposta acima. Já o artigo 33 da LDB diz que "os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes determinações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso". Ou seja, essa entidade civil, a ser determinada, ou até criada, deve colaborar com a Secretaria de Educação em cada estado ou município. Isso é problemático porque quem quiser que a própria religião seja ensinada será obrigado a se associar a essa entidade ou não será sequer considerado no diálogo com o Estado, tendo assim violada sua liberdade de associação dos outros, direito garantido pela Constituição.
A lei deixa margem a dúvidas?
ROSELI Alguns termos deixam sim. O que se considera "horário normal da escola"? O tempo que a instituição passa aberta ou aquele em que a criança efetivamente estuda? Uma coisa é certa: a lei é explícita ao declarar que o ensino religioso é facultativo. Porém o que se vê são escolas públicas desrespeitando a opção das famílias e professando, irregularmente, uma fé no ambiente educacional.
Como essa questão é tratada em outros países?
ROSELI Nos Estados Unidos, simplesmente não há ensino religioso em escolas públicas, de nenhum nível. A Revolução Francesa ensinou a relevância da laicidade e hoje o país debate para preservar o Estado laico. Portugal, que está saindo gradativamente de um acordo que o ditador Antonio Salazar assinou com a Santa Sé em 1940 e aboliu o ensino religioso das escolas públicas.
Por que é importante separar a religião do cotidiano escolar?
ROSELI A escola pública não pode se transformar em centro de doutrinação ao sabor da cabeça de um ou de outro. O espaço público é de todos. Além disso, o respeito à diversidade é um conteúdo pedagógico. É importante aprender a conviver com as diferenças e valorizá-las e não criar um ambiente de homogeneização, em que aquela pessoa que não se enquadra é deixada à parte ou vista com desconfiança e preconceito.
Como deve agir o gestor escolar para evitar irregularidades?
ROSELI O diretor da escola pública tem uma missão importante: fazer daquele espaço um lugar efetivamente para todos.Para tanto, o ensino religioso só deve existir se houver um requerimento dos pais solicitando-o. Caso contrário, não pode nem estar na grade. E, para que os filhos sejam matriculados na disciplina, é preciso que a família dê uma autorização por escrito. Os alunos não podem, em hipótese alguma, ser obrigados a frequentar essas aulas. As horas dedicadas à religião não devem ser computadas no histórico escolar para que os não-matriculados não tenham registrada uma carga horária menor do que os outros. O ideal é que o ensino religioso, quando houver, seja oferecido no contraturno. Nesse caso, cabe à escola disponibilizar outra atividade não religiosa no mesmo horário para configurar o caráter facultativo e a igualdade entre todos os alunos.
O que os pais podem fazer caso sintam que a escola está desrespeitando a liberdade religiosa?
ROSELI Tanto o Conselho Tutelar quanto o Ministério Público têm como função garantir o cumprimento das leis, inclusive as educacionais, e qualquer um desses órgãos pode ser acionado por quem achar que está tendo seus direitos violados.
As escolas confessionais e as particulares podem professar a sua fé?
ROSELI Sim. Os pais têm o direito de escolher a formação que querem dar aos filhos. A primeira LDB, de 1961, reconheceu (após muita polêmica) que deveria haver escolas particulares e, com elas, as confessionais, o que persiste até hoje. Na época, pensou-se no que fazer quando a família não tem condições financeiras para colocar a criança nessas instituições. Foram criadas então as bolsas de estudo, que são origem do sistema de filantropia nas escolas. Porém essas escolas precisam seguir os PCNs e ensinar Língua Portuguesa, Matemática, Ciências e as outras disciplinas. Assim a criança vai aprender o que diz a fé, pela qual seus pais a colocaram ali, sem deixar de conhecer o que defende a Ciência.
Quais as implicações na formação integral da criança quando ela tem seu credo - ou a opção por não seguir nenhuma crença - desrespeitado?
ROSELI Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a família tem primazia na escolha da Educação que deve dar aos filhos, inclusive quanto à doutrina religiosa a seguir. Se em casa as crianças aprendem a cultuar de uma forma e na escola de outra, nasce um conflito de valores que pode comprometer a aprendizagem. Não é possível haver a imposição religiosa no ambiente educativo.
O presidente Lula assinou um acordo com o Vaticano em 2008, que estipula a obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas públicas. E agora?
ROSELI É importante (continua)
Termos religiosos como "graças a Deus" e "nossa" (que vem de Nossa Senhora), são usados até por quem afirma não professar nenhuma fé. Não é isso que, de alguma forma, ocorre nas escolas?
ROSELI Há expressões que são culturais e as pessoas não param para pensar se estão dizendo algo com sentido religioso. Isso é observável também em outras línguas, como o gee, do inglês, pela inicial do nome da divindade (god). Porém o que se vê nas escolas públicas brasileiras é muito diferente. Dificilmente um ateu deixará de ser ateu porque disse "nossa". O que se faz lá fere a lei.
Com o aumento do número de evangélicos, as práticas dessa religião também aparecem nas escolas públicas?
ROSELI A grande presença no interior das escolas brasileiras ainda é a de práticas católicas. De outros grupos, o que existe muitas vezes é a manifestação de valores e atitudes, voltadas para garantir respeito à sua identidade religiosa, para se defender de tentativas de imposição, notadamente dos católicos.
Muitas escolas tratam de temas religiosos com os jovens alegando que isso ajuda a combater a violência.
ROSELI A religião não impede a violência. A ideia de que ela sempre faz bem é equivocada. Basta lembrar que grande parte das guerras teve origem em conflitos religiosos. Na escola, a violência deve ser combatida com o ensino ao respeito e ao reconhecimento da dignidade intrínseca a todos, não com o pensamento de que apenas as pessoas que acreditam na mesma divindade merecem consideração.
Por que misturar escola com religião é ilegal?
ROSELI No artigo 19 da Constituição, há dois incisos claros. O primeiro afirma ser vedado à União, aos estados, aos municípios e ao Distrito Federal "estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público". O outro proíbe "criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si". Ambos são os responsáveis pela definição do Estado laico, deixando-o imparcial e evitando privilegiar uma ou outra religião, para que não haja diferenças entre os brasileiros. Ora, se o Estado é laico, a escola pública - que é parte desse Estado - também deve sê-lo.
E as leis educacionais?
ROSELI Na própria Constituição, o artigo 210, parágrafo 1º, determina o ensino religioso "facultativo para o aluno, nos horários normais das escolas públicas de Ensino Fundamental", baseado na crença de que ele faz parte da "formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais", o que pode se considerar como a parte que enquadra na tal ressalva da "colaboração ao interesse público", citada na resposta acima. Já o artigo 33 da LDB diz que "os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes determinações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso". Ou seja, essa entidade civil, a ser determinada, ou até criada, deve colaborar com a Secretaria de Educação em cada estado ou município. Isso é problemático porque quem quiser que a própria religião seja ensinada será obrigado a se associar a essa entidade ou não será sequer considerado no diálogo com o Estado, tendo assim violada sua liberdade de associação dos outros, direito garantido pela Constituição.
A lei deixa margem a dúvidas?
ROSELI Alguns termos deixam sim. O que se considera "horário normal da escola"? O tempo que a instituição passa aberta ou aquele em que a criança efetivamente estuda? Uma coisa é certa: a lei é explícita ao declarar que o ensino religioso é facultativo. Porém o que se vê são escolas públicas desrespeitando a opção das famílias e professando, irregularmente, uma fé no ambiente educacional.
Como essa questão é tratada em outros países?
ROSELI Nos Estados Unidos, simplesmente não há ensino religioso em escolas públicas, de nenhum nível. A Revolução Francesa ensinou a relevância da laicidade e hoje o país debate para preservar o Estado laico. Portugal, que está saindo gradativamente de um acordo que o ditador Antonio Salazar assinou com a Santa Sé em 1940 e aboliu o ensino religioso das escolas públicas.
Por que é importante separar a religião do cotidiano escolar?
ROSELI A escola pública não pode se transformar em centro de doutrinação ao sabor da cabeça de um ou de outro. O espaço público é de todos. Além disso, o respeito à diversidade é um conteúdo pedagógico. É importante aprender a conviver com as diferenças e valorizá-las e não criar um ambiente de homogeneização, em que aquela pessoa que não se enquadra é deixada à parte ou vista com desconfiança e preconceito.
Como deve agir o gestor escolar para evitar irregularidades?
ROSELI O diretor da escola pública tem uma missão importante: fazer daquele espaço um lugar efetivamente para todos.Para tanto, o ensino religioso só deve existir se houver um requerimento dos pais solicitando-o. Caso contrário, não pode nem estar na grade. E, para que os filhos sejam matriculados na disciplina, é preciso que a família dê uma autorização por escrito. Os alunos não podem, em hipótese alguma, ser obrigados a frequentar essas aulas. As horas dedicadas à religião não devem ser computadas no histórico escolar para que os não-matriculados não tenham registrada uma carga horária menor do que os outros. O ideal é que o ensino religioso, quando houver, seja oferecido no contraturno. Nesse caso, cabe à escola disponibilizar outra atividade não religiosa no mesmo horário para configurar o caráter facultativo e a igualdade entre todos os alunos.
O que os pais podem fazer caso sintam que a escola está desrespeitando a liberdade religiosa?
ROSELI Tanto o Conselho Tutelar quanto o Ministério Público têm como função garantir o cumprimento das leis, inclusive as educacionais, e qualquer um desses órgãos pode ser acionado por quem achar que está tendo seus direitos violados.
As escolas confessionais e as particulares podem professar a sua fé?
ROSELI Sim. Os pais têm o direito de escolher a formação que querem dar aos filhos. A primeira LDB, de 1961, reconheceu (após muita polêmica) que deveria haver escolas particulares e, com elas, as confessionais, o que persiste até hoje. Na época, pensou-se no que fazer quando a família não tem condições financeiras para colocar a criança nessas instituições. Foram criadas então as bolsas de estudo, que são origem do sistema de filantropia nas escolas. Porém essas escolas precisam seguir os PCNs e ensinar Língua Portuguesa, Matemática, Ciências e as outras disciplinas. Assim a criança vai aprender o que diz a fé, pela qual seus pais a colocaram ali, sem deixar de conhecer o que defende a Ciência.
Quais as implicações na formação integral da criança quando ela tem seu credo - ou a opção por não seguir nenhuma crença - desrespeitado?
ROSELI Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a família tem primazia na escolha da Educação que deve dar aos filhos, inclusive quanto à doutrina religiosa a seguir. Se em casa as crianças aprendem a cultuar de uma forma e na escola de outra, nasce um conflito de valores que pode comprometer a aprendizagem. Não é possível haver a imposição religiosa no ambiente educativo.
O presidente Lula assinou um acordo com o Vaticano em 2008, que estipula a obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas públicas. E agora?
ROSELI É importante (continua)
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