JUSTIFICATIVA
Há muito se fala na contribuição do charque para a construção e consolidação da cidade de Pelotas-RS. Há muito se divulga a história dos barões, das baronesas, dos “homens de terra e de cultura” que aqui habitavam. Já há algum tempo se trabalha os doces como resultado cultural de uma cidade próspera com economia pujante de outrora. E não é de hoje que o badalado patrimônio construído da cidade, conjunto arquitetônico com requinte eclético, é enaltecido. No entanto, um detalhe é omitido. Um detalhe que parece pequeno, mas faz toda a diferença: ao suor de quem, de fato e de direito; principalmente, se deve a construção dessa cidade? “Barro e Sangue... O outro lado da História!” tem como objetivo estabelecer outro ponto de vista histórico da herança cultural herdada pelas atuais gerações pelotenses. O enredo para o carnaval 2014 da Academia do Samba visa se contrapor à História Oficial agregando valor a participação dos Negros nos processos constitutivos da cultura do povo de Pelotas. O fundamento para esta justificativa encontra-se na Obra literária Barro e Sangue: mão-de-obra, arquitetura e urbanismo em Pelotas. (1777-1888) de Ester J. B. Gutierrez, publicada em 2004 pela Editora da Universidade Federal de Pelotas. A autora, Arquiteta e Urbanista Historiadora Doutora em Patrimônio Histórico e Professora da Universidade Federal de Pelotas na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, autoriza a utilização de sua obra para a confecção deste enredo, bem como a citação ao título de seu livro como título do tema-enredo da Academia do Samba para o carnaval de 2014.
O Enredo será expresso com texto em terceira pessoa e, de forma lúdica, personificará o sonho do menino escravo chamado “Chiquinho” que aos dez anos de idade trabalhava na sede de uma “Fábrica de charque” às margens de um arroio no sul do Brasil Imperial.
SINOPSE
Chovia muito naquela noite de inverno. O vento que de tão veloz fazia bater as portas e as janelas da velha casa. Corredores extensos cujas paredes não rebocadas e mal pintadas, em conjunto com aquele piso de madeira opaca, emolduravam os pequenos clarões daqueles lustres de ferro fundido que balançavam quase a apagar as velas que ali ficavam. Pequenas aranhas escondiam-se no madeiramento do telhado a vista como a correrem de medo do assobio hostil provocado pela corrente de ar que por aquela circulação encanava.
Chiquinho em transe, delirando em função da febre que lhe acometera, se viu passeando feito um anjo invisível por sobre as terras de seu Barão, Sr. Euzébio. Era um dia ensolarado de primavera na Estância. Os negros trabalhavam na produção do charque acoitados sempre pelos capatazes do patrão. A qualquer movimento que lhes colocassem em suspeita, tinham suas costas imediatamente açoitadas pelos rebenques de couro de lagarto. O sangue dos negros se misturava então ao sangue das cabeças de gado, abatidas na charqueada, que escorria pelas valas em direção ao arroio.
O menino Chico, extasiado ficou ao perceber que, apesar daquele modo de vida tão difícil, era exatamente aquela atividade, realizada com requintes de crueldade, que moldaria, resultando e caracterizando, um modo de ser e de viver de uma comunidade que nascera.
A tristeza característica do menino escravo Chiquinho parecia aprofundar-se em seu delírio. Afinal, comemorariam a existência da Vila celebrando o sofrimento dos negros. Nasceria uma cidade à custa da escravidão.
Em breve, o regime servil daria lugar a outro sistema de organização do trabalho. Talvez sem a liberdade em sua plenitude, porém sem a crueldade peculiar das charqueadas, sem barro, nem sangue!
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