“Dona Marta É Superstar no País Onde a Carne Mais Barata do Mercado É a Carne Negra”
O relógio desperta às cinco da manhã, hora dela levantar, tomar banho, preparar o seu cafezinho preto e beliscar um pequeno pedaço de pão.
Lá vai Marta, mulher negra, separada e carinhosamente chamada de Dona Marta por todos da comunidade. Ela desce as vielas do morro, sua morada e sua paixão com seu short curto, top, salto alto e cabelos trançados com fios de cor. Linda, poderosa e totalmente glamourosa. Dando a maior pinta, sem medo de ser feliz.
É mais um dia de afirmar e ocupar o seu lugar. Vai mulher, move os seus quadris, rebola requebrando, anda como se dançasse, atira suas tranças aos ventos que vão te levar. Não passa despercebida, ela chama atenção com a sua luz própria! Ela vive a sua felicidade e transborda alegria todos os dias. Como mesmo diz: “Eu não existo, aconteço!”.
Corre e pega o lotação, trânsito maluco da cidade, ela não perde o foco. Realiza! Com seus fones coloridos no ouvido, música alta, masca chicletes, decora o som. Acompanha o ritmo com o corpo já pensando na coreô.
“É som de preto de favelado, mas quando toca ninguém fica parado.”
Desce no ponto, requebra mais um pouco, anda até a firma, bate o seu ponto e começa o seu trabalho do dia a dia. A manhã passa num ritmo incessante, menina trabalhadora, mulher musical.
Luvas de borracha coloridas, balde em uma das mãos, vassoura vira microfone, tudo para ela é um sonho de um palco com luzes de neon. Marta, aproveita o reflexo do espelho da sala de estar e faz o seu show! Nesse momento que esta sozinha, você é a artista maior – enquanto os patrões não chegam para te recriminar e falar que você não pode chegar lá! Eles podem não aprovar, afinal de contas, para a sociedade você é só a força dessa engrenagem.
“Elevador é quase um templo. Exemplo pra minar teu sono. Sai desse compromisso. Não vai no de serviço, se o social tem dono, não vai…”
Bate meio dia, é hora do rango, a comida no tapawer colorido parece gostosa. É o intervalo merecido para recarregar as suas energias. Na sua hora de descanso, enquanto aproveita o silêncio do pátio, coloca para tocar no seu celular a sua rapper favorita. O estalar dos dedos, os pés marcando o compasso e a cabeça que inclina no seu ritmo predileto. Balanço bom, hora do ensaio, ela só pensa em não errar o passo! Inspira-se na dança do seu ídolo que ela viu ao vivo quando ele visitou o Morro do Santa Marta: Michael Jackson!
É um momento de êxtase criativo, é a hora que ela também compõe. Sua poesia é seu grito marginalizado que há muito fora tempo silenciado dentro da sua comunidade. É tempo de por para fora toda a sua inspiração e as suas mazelas e dores do seu dia a dia. O seu corpo, sua voz e suas atitudes são ferramentas para essa expressão!
“Meu cabelo enrolado. Todos querem imitar.
Eles estão baratinados.Também querem enrolar.
Você ri da minha roupa. Você ri do meu cabelo.
Você ri da minha pele. Você ri do meu sorriso.
A verdade é que você, tem sangue crioulo.
Tem cabelo duro, sarará crioulo.”
Toca o despertar para a volta ao trabalho, a vida chama para dura realidade, ela desce do palco improvisado.
No segundo momento do dia, com sua música e sua poesia criadas, pensa em como a sua arte pode inspirar outras mulheres. Lutar diariamente é sempre gritar contra as inúmeras formas de opressão que assolam o seu universo. Resistência é ser mulher, preta e de comunidade. É criar sobre o seu próprio corpo, refletir a si mesma. É saber se posicionar ante a vida, desconstruindo os conceitos que a sociedade impõe todos os dias.
Com toda essa consciência, Dona Marta termina mais um dia de trabalho: como forças e revigorada para realizar os seus objetivos. A mulher volta para sua casa sonhando com tudo isso e pensa em um dia ser a porta voz dessa representatividade.
“Mas mesmo assim. Ainda guardo o direito.
De algum antepassado da cor. Brigar sutilmente por respeito. Brigar bravamente por respeito. Brigar por justiça e por respeito. De algum antepassado da cor. Brigar, brigar, brigar. A carne mais barata do mercado é a carne negra.”
A cidade vista lá de cima parece muito pequena, as luzes piscam ao longe. A Lua já se apresentou plena, e banha o seu corpo preto.
Batom vermelhíssimo, ruge translúcido sobrepõe a sua pele. Sombras pintam em “ton sur tom” de azuis, fazendo os seus brincos de vidro virarem joias raras. O espelho velho ainda reflete a mulher que sonha em ser uma diva.
A grande noite chega e a quadra iluminada é o seu palco. O público presente lota o ambiente, churrasquinho encontra-se na brasa e as cervejas já estão geladas. A comunidade está em festa, a grande artista, nascida e criada no morro, se apresentará!
Chegou a hora dela, chegou à noite do seu sonho se tornar realidade. Negra, poetisa, dançarina, cantora, sua voz vai ecoar. Não tem orquestra, nem maestro, mas a noite terá muita música boa. DJ solta o som para a poderosa! Hoje a festa, vai até o Sol raiar. Hoje a noite é da Dona Marta!
“Fala de mim, pensa em mim, vinte quatro horas por dia.”
“Que tiro foi esse viado? Que tiro foi esse que tá um arraso?!”
“Sou feia, mas to na moda! Sou cachorra, sou gatinha, não adianta se esquivar. Vou soltar a minha fera, eu boto o bicho pra pegar.”
“Eu sou a diva que você quer copiar. Late mais alto que daqui eu não te escuto. Do camarote, quase não dá pra te ver.”
Assim, a mulher fica cada dia mais consciente de si e se realizada. Vencendo todas as barreiras da vida e alcançando os seus sonhos e conquistando o seu merecido sucesso, mesmo que por enquanto, apenas no meio da sua gente, do seu povo, da sua comunidade. Dona Marta é Superstar!
Este enredo é inspirado na vida das artistas famosas, as guerreiras de comunidade tais como: Valesca Popozuda, Anitta, Ludmila, Tati Quebra-Barraco, Jojo Todinho, Linn da Quebrada, Mc Xuxu e principalmente nas histórias das que ainda não chegaram aos holofotes da mídia. Essas, como a nossa artista, são as nossas divas neste carnaval.
Dona Marta, um dia, com certeza chega lá!”
Texto e pesquisa: Eduardo Gonçalves e Igor Damásio
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