terça-feira, 29 de junho de 2010

O GUARANI E A INQUISÇÃO, POR AUGUSTO FRANKE BIER*

Depois de séculos da demolição contínua e sistemática de prédios históricos em toda a área dos 30 povos guaranis, um caso emblemático da violência do colonizador branco sobre o nativo surgiu recentemente na missão de San Ángel Custodio, o mais recente dos sete povos erguidos do lado brasileiro.

A grande polêmica se dava em torno de uma pintura em que aparecia uma índia de seio desnudo. A figura estava inserida numa cena pueril em que jesuítas e nativos se misturavam durante a catequese. Nada mais adequado ao sétimo povo missioneiro, que tivesse dentro de sua catedral – réplica da igreja de São Miguel – a marca maior de sua obra, numa referência à evangelização dos índios guaranis. Justamente pela fidelidade histórico-artística dessa representação, em que os verdadeiros donos desta terra aparecem em estado puro, despreocupados de pudor. No entanto, uma parte da comunidade não só exigiu que se retirasse uma obra de arte, como também reproduziu o preconceito do colonizador para com as culturas diferentes.
Na tarefa cruel de submeter povos gentios à tutela do deus cristão – que se desenvolvia paralelamente na busca por ouro e territórios –, muito sangue nativo foi derramado. Levou tempo até que os guaranis tivessem que optar entre cair nas mãos dos bandeirantes escravizadores e se deixar “domesticar” no aldeamento das missões jesuíticas. Mas a glória da experiência missioneira, sempre evocada na arquitetura monumental e nas artes remanescentes, tem nos nativos uma história de resistência que a própria Santa Madre Igreja evoca com desconforto – quando o faz! E isso vem à baila quando perguntamos o seguinte: por que, em quase século e meio de dominação, as reduções não produziram um único padre índio?
A resposta, ironicamente, vem de um jesuíta paraguaio, padre Bartolomeu Meliá, talvez a maior autoridade em estudos missioneiros ainda viva. Escreve ele que a religiosidade dos índios não reconhecia o pecado. Logo, desprovidos de culpa, não teriam como ser submetidos pelos padres, porque o maior instrumento de coerção da cristandade – a ameaça do castigo eterno – não surtia efeito. Essa pureza ainda pode ser observada por aqueles que convivem com os atuais guaranis da região missioneira. No entanto, os esforços pela descaracterização dessa cultura hoje prosseguem quando autoridades mal-intencionadas ou ignorantes estendem luz elétrica e televisão até os acampamentos. Perdendo o status de índios, que ainda os protege um pouco, e isolados de sua identidade, tornam-se párias a esmolar na porta do templo.
A nudez daquela índia na pintura foi acusada de ofender a sacralidade do altar 2 mil anos depois de Cristo. Há uma moral putrefata flutuando pelas naves da catedral de San Ángel Custodio, emitida pelos porões ancestrais da Inquisição. Nem estamos evocando o bom selvagem idealizado por Rousseau, mas um povo verdadeiro a cuja sabedoria a Igreja deveria se curvar. No entanto, aquele preconceito doentio deixa seus herdeiros. E Jesus Cristo, que, numa metáfora pela inocência, pedia que deixassem ir a ele os pequeninos, vê a representação dos seus indiozinhos apartada de sua companhia justamente por obra de um religioso cristão e suas beatas. Não é uma incoerência?

* Jornalista e chargista

Artigo publicado no jornal Zero Hora (29/06) de Porto Alegre/RS

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