Sinopse 2016
'A FARRA DO BOI'
Tão certo como com certeza que fé
demais não cheira bem (isso o povaréu dos antigamente já dizia, mas nunca fez
muita questão de praticar) e como história, causo e disse-me-disse são cousas
que toda gente aprecia, quase sempre, a vida severina ao Deus dará, nos sertões
cearenses, unia o útil ao agradável. A fé, que não costuma faiá, muito
semeou a imaginação fértil daquelas terras secas e era o cajado fiel de toda
boa alma e das nem tão boas assim também...
Rezam os cordéis que o Cariri e
vizinhança eram aperreados por lobisomens em noites pretas de lua cheia,
mulas-sem-cabeça que trotavam encandecidas pelo Crato afora, flamejantes
caiporas que zoavam Juazeiro adentro e por almas penadas que assombravam por
todo canto, que nem reza braba de rezadeira feia e benzedeira véia dava jeito.
Vixemaria! Nessa terra de crendices até quem não acredita, não duvida. Só mesmo
Deus lá em riba e o Padim Ciço aqui em baixo pra acudir.
E como Padre Cícero estava mais
pertinho, era com ele que toda a gente se apegava nas horas de carecitude. O
Padim era a fé do povo em pessoa. Um santo líder idolatrado pelos seus. Era
comum o santo padre receber alguns presentes pelos pedidos atendidos, pois o
que o povo tem de pidão, tem de agradecido. Entonce, por causo disso, certa
vez, um importante industrial chamado Delmiro Gouveia regalou Padre Cícero com
um mimo que deu muito pano pra manga. Diabéisso? Era um garrote diferente de
todos já avistados por aquelas bandas. Um filhote de boi zebu branco, calminho
por demais que o chamaram de Mansinho.
Dizem que foi Deus quem alumiou a
moleira do Padim, quando ele mandou o beato José Lourenço levar o boi Mansinho
para o seu sítio, o Baixa Dantas.
Com a nobre missão de escoltar o
boizinho do santinho de Juazeiro até o Crato, o beato rendeiro arribou,
avexado, estrada afora. No caminho, já com o quengo frito e o miolo amolecido
por conta da quentura seca daquela estiagem que judiava dos viventes, proseou
com o pequeno zebu. Pediu para que o novilho do santo Ciço ajudasse naquela
situação, a qual já se imaginava até a casa do tinhoso ser mais fresquinha e
prometeu lhe pagar botando o boi na sombra. Prontamente, os chifres do boi
balangaram e seu mugido ecoou tão alto que até os zovido de São José
escuitaram. O beato abilolado se arrupiou dos bicho-de-pé ao cocuruto, quando
avistou a chuva banhar o sertão. Acreditando estar diante de uma visagem
milagrosa, José Lourenço tratou ligeiro de fazer até surdo ouvir e cego ver que
o boi manso fazia milagre acontecer.
Arriégua! Começou o quiproquó!
Nas terras do sítio Baixa Dantas, tudo o que se plantou, deu. O pomar abundou e
as plantações cresceram. A fama do boi milagreiro se espaiou num pinote pelo
sertão. O estábulo do próspero sítio virou local de peregrinação. Um bando de
gente precisada chagava de todo canto em busca da bênção bovina. Juravam de pé
junto que a reza pro zebu era um tiro certo contra toda sorte de urucas,
urucubacas, quebrantos, gasturas, agouros, paúras, dor-nos-quarto e até
espinhela caída. Das raspas dos cascos e chifres faziam unguentos que saravam o
corpo das ziquiziras, curubas, lombrigas, bexigueiras e catipopéias. Santinhos,
medalhinhas e relíquias eram ofertados a preços módicos pra ninguém voltar pra
casa de mãos abanando.
Mansinho era pajeado como um rei,
ou melhor, como um santo. No conforto das almofadas que acomodavam seu sacrum
fiofó, os fiéis bajulavam o bichinho com salamaleques, enchiam seu bucho com
papinhas e faziam da hora de sua merenda um momento litúrgico. Os chifres eram
enfeitados com fitas, flores e badulaques. Até um rico manto bordado ele ganhou
dos devotos. Romeiros vinham adorar o “Boi Ápis do sertão” e a comparação com o
boi sagrado egípcio ganhou fama inté na capital. Boi Mansinho se tornou
uma divindade sertaneja.
Porém, fé cega é faca amolada.
Tamanho furdunço incomodou as autoridades. Dizem que profetizaram o rabo de
seta do Sete Peles serpenteando meliantemente ao redor do santo boi antes de
suceder a trairagem. Para acabar com a alegria do povo, o boizinho inocente e o
beato José Lourenço foram mandados a pulso para o xilindró. Mas, foi pior a
emenda que o soneto, pois o sacrifício do boi em praça publica foi bala saída
pela culatra, ricocheteada no avesso da intenção. Para os zóio e coração dos
fiéis a vaca tinha ido pro brejo, mas o boizinho foi pro céu. Mansinho se
transformou em um mártir, um santo de fato. Ganhou o reino das alturas para
pedir por eles pessoalmente, nem carecia mais do Padim. Oh, glória!
Só para contrariar os que até
tentaram negar sua existência, o boi santo pasta inté hoje na cultura brasileira.
Causou um forrobodó em A Revolução dos Beatos, de Dias Gomes. Virou boi de
barro nas mãos de Mestre Vitalino e dos artesãos populares. Também ainda
vévi versado, talhado e gravado nos livrinhos de cordel.
E para quem quiser dar uma de São
Tomé, certamente o Boi Mansinho é encontrado multiplicado em arte bumbando
pelos corredores do Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas do Rio de
Janeiro, a famosa Feira de São Cristóvão, às portas do paraíso... Do Paraíso do
Tuiuti.
Jack Vasconcelos
Carnavalesco
Carnavalesco
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
CARVALHO, Hernani de. No mundo
maravilhoso do folclore. Rio de Janeiro: Tipografia Batista de Souza, 1966.
FARIAS, Aírton de. História do
Ceará: Dos índios à geração Cambeba. Fortaleza, CE: Tropical, 1997.
LIMA JÚNIOR, Félix. Delmiro
Gouveia: O Mauá do sertão alagoano. Coleção Vidas e Memórias. Maceió, AL:
Departamento de Cultura/ Governo de Alagoas, 1963.
MACHADO, Clotilde de Carvalho. O
Barro na Arte Popular Brasileira. Rio de Janeiro: Lídio Ferreira Júnior, 1977.
NAVARRO, Fred. Dicionário do
Nordeste. São Paulo: Estação Liberdade, 2004.
NETO, Lira. Padre Cícero: Poder,
fé e guerra no sertão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
TEIXEIRA, Francisco Nobrega. Nos
tempos do Padre Cícero. Fortaleza, CE: Fortaleza, 1986.
Nenhum comentário:
Postar um comentário