Sinopse enredo 2019
O
SALVADOR DA PÁTRIA
Vocês que fazem parte dessa massa irão conhecer um mito
de verdade: nordestino, barbudo, baixinho, de origem pobre, amado pelos
humildes e por intelectuais, incomodou a elite e foi condenado a virar símbolo
da identidade de um povo. Um herói da resistência!
Não posso provar, mas tenho total convicção da
autenticidade de tudo o que a ele atribuíram…
Não se sabe muito bem de qual paragem veio aquele cabra,
ou melhor, bode. Dizem que era retirante da grande seca no sertão cearense
imortalizada pela escritora Rachel de Queiróz, em O Quinze. Naqueles tempos de
República quase balzaquiana, o Governo interceptava as procissões de fugitivos
da miséria. Com medo de uma invasão furiosa, devido à fome que consumia aqueles
esquecidos teimosos em se fazerem lembrar, pastorava o povaréu num campo de
concentração antes que chegassem até a cidade. Porém, como o sertanejo é, acima
de tudo, um forte, quando viu a terra ardendo e sentiu a baforada do Zé Maria
no cangote o bode bumbou até Fortaleza com a coragem e a cara.
Penou, mas chegou.
Sentiu a brisa fresca do litoral acariciar aquela
carcaça sofrida, castigada. Deixou para trás o passado capiongo, quando foi
comprado por José de Magalhães Porto, representante do industrial Delmiro
Gouveia, correspondente da empresa britânica que comercializava couros, peles,
sementes de algodão e borracha, a Rossbach Brazil Company, localizada na Rua
Dragão do Mar, Praia do Peixe. Dali virou mascote com direito à liberdade de ir
e vir que, aliás, era bem praticada. Apreciava o movimento de barcos e jangadas
enquanto perambulava entre os pescadores e seguia o aroma dos tabuleiros das
merendeiras, tanto que os populares da região logo se afeiçoaram ao bichim.
Dizem até ter remoçado em sua nova vida à beira-mar.
Ao cair da tarde, arribava pra Praça do Ferreira
sassaricar com os artistas e intelectuais, herdeiros da Padaria Espiritual, no
Café Java. Os boêmios acreditavam ser o poeta Paulo Laranjeira, reencarnado
depois que o cabrão reagiu ao ouvir uma composição feita pelo desencarnado em
homenagem a sua decepção amorosa. Desde então, o bode caiu nos braços da
boemia. Bebericava, pitava, serestava pelas ruas, vielas e mafuás, botando
boneco noite a fora.
De tanto vai e vem passou a ser chamado de Ioiô.
E lá se ia o bode Ioiô bater seus cascos Belle Époque
alencariana adentro, sem a menor cerimônia, entre as modas copiadas do
estrangeiro pelas “pessoas de bem” da sociedade. Passeou de bonde elétrico,
frequentou o Theatro José de Alencar, participou de saraus literários e até
comeu a fita inaugural do Cine Moderno.
Sentiu as Mademoiselles espilicutes exalando um perfume
de civilidade europeia quando saíam da Maison Art-Nouveau em direção ao Passeio
Público. Doce aroma que era constantemente interrompido pelo peculiar cheirinho
de certo bode que dava rabissaca pro Código de Conduta imposto que, dentre
muitas medidas disciplinadoras, proibia animais soltos nas ruas. Um Dândi
sertanejo tão incômodo como as camadas pobres e marginalizadas as quais o poder
desejava esconder por debaixo dos tapetes chiques para não atrapalharem o
savoir-vivre nas avenidas, confeitarias, jardins, clubes e salões. Assim,
velhos hábitos considerados de gente subdesenvolvida deveriam ser substituídos
por novos costumes, os bons modos. Tanto cidade quanto população careciam ser modificadas,
remodeladas num choque de aformoseamento. Afinal, para a elite, as maravilhas
do mundo moderno não harmonizavam com a matutice do povo.
Povo, aliás, que já era mamulengo nas mãos dos
poderosos, há muito tempo. A política republicana havia herdado antigos
sistemas coloniais que se consolidaram em influentes famílias tradicionais e no
domínio dos coronéis latifundiários, pois a prática do “manda quem pode e
obedece quem tem juízo” era um tiro certeiro. Cabia à população ser tratada
como gado trazido em cabresto curto, quais as aves de rapina direcionavam para
onde quisessem, e cativos em currais eleitorais para que ela mesma sustentasse
o sistema que a prejudicava.
Com um cenário governamental mais parecido com um covil
repleto de animais nocivos ao interesse público e a feérica intervenção de
aculturamento, a insatisfação popular só crescia. Até que a resposta do povaréu
veio em forma de protesto no mais inesperado momento: nas eleições. Ao abrir a
urna eleitoral se ouviu o berro do povo escrito nos votos que elegeram o bode
Ioiô para vereador na Câmara Municipal de Fortaleza. Um deboche com os
poderosos. Molecagem porreta! Sem ter feito campanha um animal ruminante era
eleito pelo povo como seu representante! E, de fato, há muito já era um símbolo
da identificação sertaneja que a elite (ameaçada pelas cédulas de papel) queria
suprimir.
Contam que o fuá já estava instalado quando os poderosos
articularam um golpe para que o bode Ioiô sofresse um impedimento e não
assumisse o cargo ao qual foi eleito legitimamente, em processo democrático.
Porém, a justificativa jurídica de incompatibilidade de espécie não livrou os
políticos daquele vexame retumbante e só alimentou o monstro: Ioiô saiu da vida
pública para entrar na história.
O bode mitou. Até hoje seus admiradores o defendem como
ícone de empoderamento popular, representatividade dos marginalizados. Segue
comandando a revolução do inconformismo seja nas lembranças dos memorialistas,
nos cordéis, nos livros, na sala de um museu ou pelos blocos carnavalescos.
Ioiô é a imagem da resiliência de um povo que faz graça até da própria desgraça
e, com esse jeitinho inigualável, nos revela o genuíno salvador da nossa
pátria: o bom humor.
[Isso aqui, Ioiô, foi um pouquinho de Brasil].
Lembrete:
Votar em animais é e sempre será possível.
Jack Vasconcelos
carnavalesco
Bibliografia consultada:
BRUNO, Artur; FARIAS, Airton de, Fortaleza: uma breve
história, Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2015.
GIRÃO, Raimundo, Geografia estética de Fortaleza,
Fortaleza: Edições BNB, 1979.
MANUELA DA SILVA VIEIRA, Carla, O Theatro José de
Alencar do início do século XX: modernidade e sociabilidades (1908-1912),
Fortaleza: SECULT, 2011.
PONTE, Sebastião Rogério, Fortaleza Belle Époque:
reforma urbana e controle social 1860-1930, Fortaleza: Edições Demócrito Rocha,
2014.
SILVA, Marco Aurélio Ferreira da, Humor, vergonha e
decoro na cidade de Fortaleza (1850-1890), Fortaleza: Museu do Ceará, SECULT,
2009.
VIEIRA, Carla M, Sociabilidade e Lazer: Fortaleza no
início do século XX, Fortaleza: INESP, 2015.
Nenhum comentário:
Postar um comentário