Enredo 2017
XINGU - O CLAMOR QUE VEM DA FLORESTA
"O
índio estacionou no tempo e no espaço. O mesmo arco que faz hoje, seus
antepassados faziam há mil anos. Se pararam nesse sentido, evoluíram quanto ao
comportamento do homem dentro da sociedade. O índio em sua comunidade tem um
lugar estável e tranquilo. É totalmente livre, sem precisar dar satisfações de
seus atos a quem quer que seja. Toda a estabilidade social, toda a coesão, está
assentada num mundo mítico. Que diferença enorme entre as duas humanidades! Uma
tranquila, onde o homem é dono de todos os seus atos. Outra, uma sociedade em
convulsão, onde é preciso um aparato, um sistema repressivo para poder manter a
ordem e a paz".
(Orlando
Villas-Bôas, sertanista)
Introdução
- Hoje,
não vamos falar apenas de lendas, nem alimentar mistérios que dependem de nossa
imaginação. Você cresceu, guerreiro menino, não é mais um curumim. Teve coragem
para enfrentar as tucandeiras, traz no rosto as marcas do gavião e já consegue
enxergar além das curvas do caminho. Hoje, vamos falar da verdade. É preciso
entender o passado para saber o que nos aguardar no futuro.
Quando
seus pés tocarem o chão, pise com a certeza de quem ninguém ama tanto esta
terra como a nossa gente. Somos o povo da floresta. Os espíritos de nossos
ancestrais dormem nos troncos das árvores. O amanhã resiste em cada semente
carregada pela força do destino, conduzida pelos pássaros que enfeitam nossos
cocares, orientam nossas flechas e repovoam essa gigantesca floresta. Nós somos
a floresta e deixaremos que o vento leve este canto aos homens de boa vontade.
Eles precisam nos ouvir.
Sim,
guerreiro menino, porque quando não existir mais floresta, nossa gente será
apenas lembrança e o que eles chamam de país, já não terá nenhuma esperança...
Celebração
Tribal
- Nosso
irmãos vêm de canoa, dos lugares mais distantes da floresta. Fazem uma roda no
centro da aldeia. Corpos pintados, iluminados pela lua cheia. É noite de festa.
Vamos dançar ao redor da fogueira. Mavutsinim, o Criador, nos chamou para
celebrar a paz e o amor. Tambores, flautas e maracás tocarão a noite inteira. E
quando o dia clarear, nossa alma despertará: formosa, cabocla, guerreira...
Verdadeiramente brasileira!
Devemos
encarar a vida com simplicidade. A terra aquecida pelo Sol é a mesma que a Lua
protege com o véu da noite, guardando as surpresas para o novo dia. Sonhos
existem, mas o destino somos nós que traçamos: colhemos o que plantamos. A
morte faz parte da vida. Ela é o resultado de nossas experiências. É a colheita
de nossa existência. Ao guardar os espíritos de nossos antepassados em troncos
sagrados, criamos uma ponte para a eternidade. No Kuarup, o que era mito, vira
realidade. Celebramos essa derradeira viagem com muita alegria, festejando a
certeza de que ratos são os que partem com tamanha serenidade - servindo de
exemplo para os seus e a comunidade. Cantamos e dançamos, orgulhosos do nosso
jeito de fazer parte da Humanidade.
O Paraíso
Era Aqui
- Amamos
esta terra muito antes de ela se chamar Brasil. Desde o tempo em que não havia
fronteiras. Era céu e chão, até onde os olhos pudessem alcançar, percorrendo
serras, florestas, rios, cachoeiras... Sobre o ventre da Natureza, Tupã
estendia o seu manto. Como por um encanto, do lago surgia um pássaro sagrado,
protegendo a nação Kamayurá, fazendo a vida brotar... intensa, pujante, vibrante,
com um infinidade de cores. Nuvens de borboletas enfeitava as flores.
Pirarucus, tambaquis, tucunarés povoavam os igarapés. Aranhas tecelãs bordavam
suas teias, pirilampos faiscavam na aldeia. Na mata, roncava o javali. Do alto
dos buritis, ecoava uma sinfonia. Cigarra cantava, acompanhando um coral de
aves. O som grave dos bugios e o esturro da suçurana alertava para um risco
permanente à nossa frente. Quem vem lá? Kayapó ou Kalapalo? Tatu ou tamanduá?
Assim era a nossa floresta, casa de nossa gente. Não foi acaso que, quando a
caraíba aqui chegou, imaginou estar no Paraíso - um Jardim Sagrado, de onde o
próprio Deus dele o expulsou.
O
"Abraço" da Sucuri
- Se
perderam o seu Paraíso, os caraíbas partiram para conquistar o nosso, pequeno
guerreiro - talvez, por vingança de Anhangá, o feiticeiro. Impulsionadas pelos
ventos da cobiça, as naus aportaram em nossas praias, trazendo ensinamentos que
os invasores nunca ousaram praticar. Nada mais seria como antes. Em vez de nos
tratar como semelhantes, nos chamaram de selvagens e tentaram nos escravizar.
Vinham do Velho Mundo e representavam a civilização. Chegaram arrogantes, se
apoderando de nossas terras e riquezas. Levaram ouro, prata e diamantes, e uma
madeira que tingia com sangue, lembranças de tantas belezas. Em trocam, traziam
espelhos, doenças e destruição. Sua missão era usar a cruz de um Deus que
morava no céu, fincando marcos aqui e ali; usando palavras sagradas, deixaram
nossa gente esmagada, como no abraço lento e mortal da sucuri.
Belos
Monstros
- Caraíba
não mede consequências. Acredita na sua ciência, buscando o que chama de
progresso. Derruba floresta, espalha veneno e acha o mundo pequeno para semear
tanta arrogância. Invade nossas terras, liga a motosserra e no lugar dos
troncos sagrados, planta a ganância. Caraíba precisa de mais energia para
alimentar os seus interesses. Cria verdadeiros monstros. Belos monstros...
usinas que devoram rios, matam peixes, secam nascentes, inundam na lama o
futuro de nossa gente. Não podemos deixar, guerreiro menino, que afoguem o
nosso destino. Nossa casa é aqui! E não devemos nos curvar. Precisamos honrar
cada dente do colar, cada palavra do irmão Raoni!
Caciques
Brancos
- Também
é justo lembrar de caraíbas que foram amigos. Eles se embrenharam pelo sertão
para fazer do Brasil uma grande nação, criando picadas, abrindo estradas e
campos de pouso para a aviação. Foram os primeiros a escrever nessas terras a
palavra integração. Eles ficaram encantados com o nosso jeito de ser. Não
conseguiam entender que para respeitar e ser respeitado, nenhum de nós precisa
vigiar ou ser vigiado. Responsabilidade sempre foi um princípio honrado com a
família e a comunidade. Fizemos um kuarup para saudar esses caciques brancos em
nossos rituais. Eu ainda era rapaz, pequeno guerreiro, quando os vi no Roçador.
Acompanhei suas expedições. Vinham em batelões, trazendo respeito e amor.
Ficarão para sempre em nossos corações, protegidos por Tupã. Louvados sejam os
irmãos Villas Boas, que nos ajudaram a encontrar a passagem para o Amanhã!
O Clamor
da Floresta
- As
nações xinguanas se reúnem para celebrar o orgulho de ser índio e pedem licença
para falar: Enquanto o caraíba não recuperar o seu equilíbrio, a Natureza
agonizará. E sem ela, sem a proteção da Mãe de todos nós, estaremos ameaçados -
seja na terra dos civilizados, ou nos confins dos povos isolados. Já é tempo de
o caraíba cultivar a humildade e aprender com o índio o que chama de
sustentabilidade. Precisa esquecer os lucros, o progresso, o consumo e o
desenvolvimento; zelar pelos sentimentos e os compromissos com a Humanidade,
retirando da Natureza apenas o que basta para o seu sustento.
Jovem
guerreiro, voe nas asas do vento e espalhe estas palavras de Norte e Sul. Os
povos não-índios precisam entender que é chegado o momento de ouvir o clamor do
Xingu!
Pesquisa,
desenvolvimento e texto: Cahe Rodrigues, Marta Queiroz e Cláudio Vieira
Glossário
Anhangá -
Segundo o índio, espírito que vagava após a morte, atormentando os
viventes.
Batelões
- Embarcações de fundo chato, usadas para navegar em rios rasos.
Bugio -
Espécie de macaco também conhecido como guariba ou barbado.
Buriti -
Palmeira que dá um fruto do mesmo nome, rico em vitamina C e largo uso na
cosmética.
Caraíba -
Segundo o índio, o branco.
Kalapalo
- Uma das 16 etnias do Parque Indígena do Xingu.
Kamayurá
- Uma das etnias do Brasil Central
Kuarup -
Ritual xinguano em homenagem aos mortos.
Mavutsinim
- Segunda a etnia Kamayurá, o primeiro homem, o Criador.
Pirarucus,
tambaquis, tucunarés - Peixes dos rios da Amazônia e do Brasil Central.
Raoni -
líder indígena da etnia Kayapó.
Roncador
- Serra do Roncador, o ponto mais central do Brasil, situado entre os rios das
Mortes e Araguaia, entre os rios Kuluene e o Xingu, no Mato Grosso.
Suçuarama
- Onça parda.
Tucandeira
- Formiga cuja picada é capaz de matar um homem. No ritual da iniciação, quando
da passagem do menino índio para a adolescência, os jovens guerreiros provam a
sua coragem colocando a mão em luvas de palha com várias dessas formidas,
suportando as ferroadas durante 15 minutos.
Tupá - o
deus supremo dos indígenas.
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