Enredo 2017
"Versando Nogueira Nos Cem Anos do Ritmo Que É Nó
na Madeira"
Estrutura
do enredo:
1)
Cem anos de luta pela sobrevivência;
2) Cem anos de forças inspiradoras;
3) Cem anos de amores e dissabores;
4) Cem anos de espírito de celebração.
2) Cem anos de forças inspiradoras;
3) Cem anos de amores e dissabores;
4) Cem anos de espírito de celebração.
"O samba
é nó na madeira, é jaqueira, mangueira, salgueiro, tamarindeira, árvores de
frutos melodiosos que, durante um século, danaram de versar de modos
incontáveis sobre o Brasil grande e miscigenado. Ninguém aguenta a força de um
samba, não. É também, modéstia à parte, uma nogueira, ou melhor, um certo
Nogueira que agora se exibe, e cá misturo os gêneros masculino e feminino ao
tratar deste tronco aqui, forte e boêmio, que enxergou lá longe e do alto o
tamanho do ritmo casamenteiro de favela com asfalto. Eu mesmo, João Nogueira,
sambista de calçada da melhor cepa, lenha na fogueira acesa no limiar dos altos
e baixos da cidade, vivi quase 60 dos 100 anos do samba, mas retratei de alma
sua história inteirinha. Hoje, o ritmo mira o espelho e enxerga no reflexo seu
próprio antepassado de lutas e glória, na carona de inspiração minha. Se a mim,
logo cedo, faltou o velho, também o samba se ressentiu da ausência de pai
presente a todo tempo, mesmo misturado de fundo e alma em sua formação. Seguiu
marginal, levando porrada do poder vigente, correndo do camburão, mas foi assim
crescendo, se criando sozinho, beijando poetas a perder de vista, habituado com
o adverso, este que em tantas e tantas machucou seus versos.
Samba que vem
de negros antepassados, de escravos acorrentados, cujo som, sob a luz do
cativeiro, embalava até mesmo o sorriso de algumas sinhás. Ê, vida voa, vai no
tempo, vai. E aí o danado - tão morro quanto cidade -, ganhou a alta sociedade
e, faceiro de tudo, já até frequenta o Municipal. Bate lata, bate bumbo, bate
surdo, tamborim. O samba nasce desse jeito, espécie de luz que chega de repente
e atinge o coração do poeta com a rapidez de uma estrela. Cadente,
incandescente, ardente. Acende a mente, o coração e a quem mais puder
contaminar com a sua flechada certeira. O poder da criação é assim, emerge de
uma força maior que nos guia, talvez pulsante desde os batuques ancestrais nos
terreiros dos açoites. E desafia a ciência dos homens, a matemática das coisas,
como um sol que se esparrama ou o mar que leva consigo o pó de nossos dias. Eu
preferi viver ao lado da poesia, o que sempre quis, e somente Deus conseguiria
julgar se esta escolha foi - ou não - entre todas a mais feliz. Peço a ele que
me ajude nos questionamentos do porvir.
Sim, já sei
na pele que o corpo a morte leva, mas o nome, o nosso nome é a obra quem
imortaliza. E por isso sigo vivo, pois a brisa sempre traz de volta a luz forte
da minha música - mesmo que num radinho de pilha qualquer ou no último dos
vinis, talvez arranhado e rascante, como a voz a mim destinada pela vida -, e
cisma de me iluminar pra lá de além da morte. Agô! Agô, todos os Orixás! Num
batucajé que vai ao longe, eu canto pro meu pai, pras filhas e filhos de santo,
para tantas religiões em conversa constante através do ritmo guri de cem
primaveras. O samba é das forças guerreiras, da mineira Clara, filha de Ogum
com Iansã, ser de luz, abençoada pelo menino Deus como sabiá. E é também mulher
de carne e osso, que derruba marmanjos apenas no charme. Ajude-me a encontrar -
rogo-lhe -, Maria Rita, que andava gingando com laço de fita, cabrocha bonita,
de corpo escultural. Por onde andará? Sambei na cidade com meu cordão, mas pra
mim foi só metade, faltou a sua mão. Eu, hein, Rosa?, penso cá que nestes
sambas estou me derretendo demais por estas pequenas, forçando demais as
cordas. Que coisa indecorosa!
Afinal, houve
ainda, lembro bem, aquela morena substantiva, pimenta demais pro meu vatapá.
Ardeu, foi embora, e me restou de consolo apenas o antigo violão molhado de
pranto até dizer chega. Ardeu muito, ardeu pra danar. Meu coração parou e tudo,
desacreditou no melhor dos verbos. Eis que a moçoila, pasme!, resolveu querer
voltar. Mas aí, não teve jeito, Inês já era morta, mortinha da Silva, do lado
de cá. Jogo de versador é na retranca, mas qualquer um se embevece com brincos
de um ouro, porte de dama, uma bela cigana. E esta tal leitora de destinos
cabou que levou meu dinheiro, mas sem perceber retirou meu veleiro lá do fundo
do mar. Aliás, esse mar é meu e coisa de todo sambista: joga a rede e vêm no
arrastão amores e lagosta que só Deus dá. Espere, oh, nega, nosso dia inda
chega. Ah, se chega... O samba tem dessas, que é prum batuque à mesa e em roda,
sem querer e por tabela, em acordes retratar.
Foi nestas
rodas, tome nota, que o ritmo encorpou. Ele é pai e filho dos encontros, dos
furdunços e marafos, do espírito de celebração. É por isso que eu vivo no Clube
do Samba, com esta gente bamba que eu me amarro de montão. Ali tem povo de
Madureira, Vila Isabel e do meu Méier, onde hoje impero como centro cultural.
Sem contar o pessoal boêmio do Alcazar, em Copacabana, da Mangueira, Leblon,
Ipanema e até da Vintém, lá pra longe da Brasil. Labareda no olhar, pulei de
bloco em bloco, com samba, amor e tradição jorrando de todos os poros - assim
gravei minha verdade. Certa feita, fui a um baile no Elite, Orquestra Tabajara,
trombone, sax, pistom. De quebra, teve até Lupicínio na voz do bom e velho
Jamelão. Papa fina, também sou desses, em cima do chão ou embaixo do céu, samba
não tem mistério ou vergonhas, festa e mistura, e a minha é de preto com
vermelho - rubro-negro sim, senhor, você sabe... Com a licença de Wilson
Baptista e Jorge de Castro, troquei Rubens, Dequinha e Pavão, lendas do
tricampeonato dos 50, pelos deuses Zico, Adílio e Adão. Somos todos
flamenguistas, não almoçamos nem jantamos em dia de derrota, os autores
haveriam de concordar com este meu afã autoral de fanatismo, não é mesmo?
Mas nenhuma
roda, bloco ou clube eu cantei mais que um grêmio liderado por certo homem de
um braço só, azul de poesia, branco da paz, beijo apaixonado de Oswaldo Cruz em
Madureira. Grêmio, não. Escola. Mulher como as que os sambistas cantam, só que
esta a maior de todas. Eu sei, Portela, a filosofia de todo poeta é ter um
porto seguro. Foste o meu. Meu filho amado - e aqui caminho para encerrar este
testamento musicado dedicado a você -, fiz desta agremiação a verdadeira rainha
do meu carnaval, para quem abri a janela do peito e, admirado, me percebi no
próprio céu. Hoje, cá de cima, faço o samba centenário se olhar além do espelho
em suas mil faces que o tempo ali guardou. Vim cumprir a missão final que me
foi confiada por Deus e deixar em seu colo este relicário de obras - minha
fortuna pessoal -, com o pedido de que toque em frente tão sublime história: Se
o meu pai foi espelho em minha vida, quero ser pro meu filho espelho seu?,
eternizei. Que assim seja.
Diogo,
um beijo do seu pai e até para sempre.
João Nogueira"
João Nogueira"
Músicas de João Nogueira com ou sem parceiros que inspiraram o texto:
Nó na madeira
E lá vou eu (Mensageiro)
Espelho
Apoteose do samba
Do jeito que o rei mandou
O poder da criação
As forças da natureza
Quem sabe é Deus
Súplica
Batucajé
Mineira
Um ser de luz
Maria Rita*
Morrendo verso em verso
Eu, hein, Rosa?
Pimenta no vatapá
Batendo a porta
Bela cigana
Das 200 pra lá
Espere, oh, nega!
Clube do samba
Labareda**
Rio, samba, amor e Tradição
Baile no Elite
Samba rubro-negro***
O homem de um braço só
Sonho de bamba
Eu sei, Portela
Além do espelho
*Samba de Luiz Grande
**Samba de Jorge Simas e Paulo Cesar Feital
*** Samba de Wilson Baptista e Jorge de Castro
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