“O Rei Que Bordou o Mundo”
S I N O P S E
E vós, ó coisas navais, meus velhos brinquedos de sonho!
Componde fora de mim a minha vida interior!
(…)
Ter a audácia ao vento dos panos das velas!
Ser, como as gáveas altas, o assobio dos ventos!
Álvaro de Campos – Ode marítima
Sete anjos, sobre sete nuvens, desceram do sétimo céu e
abriram o sétimo selo. Munidos com as suas armas, mostraram um descaminho.
Dezembro, Rio de Janeiro. No destino do peregrino, a Igreja da Candelária e o
Mosteiro de São Bento. Cingiu o ouro barroco, era véspera de Natal, a REVELAÇÃO
divina – faísca, raio, trovão, estrela. Centelha! O sonho, o senho, a missão
atribuída pelas vozes do Criador: inventariar o mundo, antes do Julgamento.
OS ANJOS VÃO ARRIANDO
A FORMOSA FINA PLUMA
POR ONDE SAHI O VERBO
(…)
As vozes roucas dos homens, porém, condenaram mais um
corpo negro. O corpo virou um número e foi uniformizado, armazenado à toa, à
força, beijar a lona, entre tantos prisioneiros de passagem. Num cemitério de
vivos – o grito de Lima Barreto ecoa nos manicômios.
Mas a arte irrompeu da pele, rasgou o corpo, refez a
roupa. Desfiou as suas memórias, floriu nas suas mandalas. Nos lençóis
amarrotados, bússolas e astrolábios; a cela, claustro-oficina, o quarto de um
grande palácio: castelo de um Rei Antigo, o Senhor do Labirinto, a Coroa de São
Benedito e o Manto da Senhora do Rosário. Mapas, Atlas, compêndios –
desfraldados sob o Sol inteiro, os sinos do campanário. Bordou, construiu,
desenhou, destruiu. Tapeçarias e pompas, o mundo que viu outrora:
VOIS HABITANTES
DA TERRA
EU APRESENTO
AS SUAS NAÇÕES
Bandeiras, brasões, fardas, fardões, os ringues onde
lutou, os portos que percorreu, concursos, medalhas, disputas. O arame do
último circo, o andaime maior da cidade. Arenas de homens e feras: a guerra!
Roda-viva ferida, rosáceas no firmamento. Soldados, estilhaços, fragmentos. O
fio do medo. TABULEIRO DE XADREZ na praia.
Retalhos, pedaços, quimeras. Acúmulos. Estradas!
UM DIA EU SIMPLESMENTE APARECI
E um dia se foi embora, entretecendo mistérios. Trilhou
a sua CHEGANÇA, a APRESENTAÇÃO em glória. Na “procissão profana”, o samba, a
mui sagrada alegria rebrilha em fitas e franjas. Gira o carrossel da infância,
engenho e moenda em brasa! O mundo, enfim, recriado:
Reis Negros, Rei Congo, Reis Magos, Rei Mouro.
Quilombos, reisados, rebolos, taieiras.
Remansos, rabecas, retratos, palavras.
Palavras, palavras, palavras.
Fogueiras, candeias, Cangira, cabaças.
Festa caipira na praça.
Rocas, teares, caboclos, cocares. Agulhas.
Mel de cana-de-açúcar. Mel de abelha selvagem.
O Rio de muitas voltas, o rio da sua aldeia.
Rendeiras e rendendês, ao som do reco-reco.
Dançam as bandeirolas, o vento chama.
Ouro e prata resplandecem: não há abismos.
O cosmo, o mito, luzeiros-botões no espaço, a abóbada
celeste.
De um Ser-tão profundo: tudo. Cruzado. Na alma agreste.
EU PRECISO DESTAS
PALAVRAS – ESCRITA
Almirantes e tenentes, cavaleiros e grumetes, cuícas e
pandeiros, atabaques e ganzás: a escola em cuja bandeira existe um livro sendo
escrito a pena, historicamente comprometida com a exaltação da
afro-brasilidade, veste o fardão em verde, a imortalidade, e canta um profeta
negro, pobre, marginalizado, excluído e aprisionado, que fez do corpo o
estandarte e descortinou a aura:
EU SOU O REI DOS REIS
ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO
Livre que varre o tempo, as águas dos devaneios.
Um navio carrega os desejos de quem nele navegar.
Das Narrenschiff
Ao mar, nobres marinheiros! Ao mar!
EU VOU DEIXA
ESTE GLOBO
ESPLENDO
ESTRONDO!
Gabriel Haddad e Leonardo Bora
Carnavalescos
Os trechos em caixa-alta são partes do texto original de
Arthur Bispo do Rosário, bordados encontrados em mantos, fardas, estandartes,
assemblages, miniaturas e demais peças.
GLOSSÁRIO
Prisioneiros de passagem: Referência ao título do filme
(curta-metragem) realizado pelo fotógrafo e psicanalista Hugo Denizart, O
prisioneiro da passagem. A película ajudou a divulgar o trabalho de Arthur
Bispo do Rosário entre os círculos artísticos e denunciou as condições assustadoras
em que viviam os “pacientes” da Colônia Juliano Moreira.
Cemitério de vivos: Menção ao livro O cemitério dos
vivos, de Afonso Henriques de Lima Barreto, escritor negro, diagnosticado
esquizofrênico, que foi internado no Hospital dos Alienados, no Rio de Janeiro,
no início da década de 1920; neste mesmo hospital, Arthur Bispo do Rosário foi
inicialmente trancafiado. Depois, transferido para a Juliano Moreira.
Senhor do Labirinto: Referência dupla: ao livro de
Luciana Hidalgo, O senhor do labirinto, base para o entendimento da dimensão
literária da obra do homenageado; e ao longa-metragem de Geraldo Motta Filho e
Gisella de Mello, no qual Arthur Bispo do Rosário é interpretado pelo ator
Flávio Bauraqui.
Chegança: Festejo tradicional do Sergipe, a terra de
Arthur Bispo do Rosário. Auto popular ligado ao ciclo natalino, expressa a
rotina dos marinheiros e os conflitos entre mouros e cristãos. Mantos, capas,
franjas, bordados, coroas, espadas e símbolos da Marinha se misturam em tal
evento – temas recorrentes no “inventário do mundo”.
Apresentação: A forma como Arthur Bispo do Rosário se
referia ao momento da entrega da obra construída ao Criador, vestindo a
mortalha sagrada – o “Manto da Apresentação”.
Palavras, palavras, palavras: Célebre trecho de Hamlet,
peça de William Shakespeare. O personagem-título simula estar louco para
desmascarar seus opositores. Há referências às casas reais e ao imaginário
shakespeariano (“cama de Romeu e Julieta”) na obra de Arthur Bispo do Rosário –
cujo nome de batismo, Arthur, nos remete à figura do Rei Arthur e aos
Cavaleiros da Távola Redonda (signos presentes no medievalismo nordestino,
especialmente na literatura de cordel).
Rio de muitas voltas: Significado de Japaratuba, berço
de Arthur Bispo do Rosário, no Sergipe. Solo ancestral de folguedos (cheganças,
reisados, congadas, taieiras, a Festa das Cabacinhas), terra de moendas e
engenhos de cana-de-açúcar, procissões e ritos de catolicismo popular, couro de
tambores quilombolas e noites de batuques e fogueiras.
Das Narrenschiff: “Nau dos insensatos”, barco que
realmente existiu, na Idade Média, cujo fim era retirar da vida em sociedade os
possessos “indigentes”, aprisionando-os às correntezas. Pintura (fragmentada)
de Hiermonymus Bosch, El Bosco, percursor do surrealismo. Arthur Bispo do
Rosário, que foi marinheiro e pugilista, confeccionou uma série de navios,
jangadas e demais embarcações, hoje compreendidos enquanto símbolos da luta
antimanicomial. Tais peças já foram expostas nas bienais de Veneza, São Paulo e
Lyon, no Victoria and Albert Museum, em Londres, no Parque Lage e no MAM do Rio
de Janeiro, além de inúmeras outras mostras e bienais. O acervo pode ser
visitado no Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
ARAÚJO, Emanoel (et al.) Arthur Bispo do Rosário. Rio de
Janeiro: Réptil, 2012.
CAMPOS, Marcelo (org.). Um canto, dois sertões. Bispo do
Rosário e os 90 anos da Colônia Juliano Moreira. Rio de Janeiro: Museu Bispo do
Rosário de Arte Contemporânea / Azougue Editorial, 2016.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de
Símbolos. Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 18ª
edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.
DANTAS, Marta. Arthur Bispo do Rosário: a poética do
delírio. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. São Paulo:
Editora Mercuryo, 1992.
HIDALGO, Luciana. Arthur Bispo do Rosário: o senhor do
labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
MORAIS, Frederico. Arthur Bispo do Rosário: arte além da
loucura. Rio de Janeiro: NAU / Livre Galeria, 2013.
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