Revisão da Sinopse:
"Academicamente
Popular”
Vindos da fria Europa, com a missão de fundar no Novo Mundo
uma nova Academia artística, os célebres virtuosos do Império Napoleônico
desembarcam nas águas quentes da Guanabara, trazidos pela vontade soberana de
Dom João. Em suas malas, a riqueza da bagagem Neoclássica: réguas, esquadros,
pincéis e manuais, o desejo de “civilizar” através da força de seus ícones
culturais. Fundam a Escola Real de Ciências Artes e Ofícios para organizar o
ensino das artes e estabelecer uma linguagem estética oficial para a corte da
nova capital. A nobre arte francesa toca o solo brasileiro para fincar suas
raízes e edificar seus conceitos, erguendo colunas de saberes. Era seu destino
semear essa nova terra, incrivelmente fértil de possibilidades.
A beleza sempre foi a mais cobiçada de todas as bênçãos.
Através dos tempos, o homem buscou a forma ideal, a sensação plena da estética.
Desde a Antiguidade Clássica, o belo era tratado e considerado uma dádiva dos
deuses e cultuado pelos mortais. A arte sempre foi objeto de encantamento e
despertar dos sentidos, emoções e sensações - uma das ferramentas mais
importantes na construção das alegorias da mente humana.
O povo sempre buscou a força da arte para se entender humano
e transcender o “ser humano”, como partes complementares de uma mesma
existência.
Quis o destino que esse peculiar encontro ganhasse novos e
singulares contornos nas terras do Novo Mundo, banhado pelo Atlântico,
emoldurado por um verde exuberante. Musas da arte sopraram através dos mares
misteriosos às mentes de nobres artistas até a nova capital do império
português. Tal encontro só poderia surgir nessa terra privilegiada, isolada
entre o mar e montanha, que chamamos São Sebastião do Rio de Janeiro. O
encontro entre a arte acadêmica e as forças ocultas que nascem do povo: no
caso, um povo mestiço, matizado com tons nativos e africanos. Somente aqui
seria possível conceber tal mistura, entre a acadêmica arte e a espontaneidade
dos mais calorosos corações.
Rapidamente, a força desse cenário captura a alma de Debret,
que eterniza em aquarela a diversidade desse novo mundo que surgia. O olhar do
talentoso artista foi enamorado pela beleza local e pelo esplendor de nossa
mestiçagem. Em suas pinceladas, registrou o cenário da capital do Império, com
todos os seus contrastes. Impossível ficar indiferente aos cânticos vindos das
ruas, onde o entrudo tomava as praças em dias de festejo carnavalesco, como um
cronista visual buscava o exótico, o cotidiano, os viveres dessa gente. Sua
obra testemunhava a fluência do encontro de nossas matrizes culturais. Um Rio
onde a negritude predominava caminhando por um cenário de arquitetura colonial.
Com o passar dos anos, as primeiras gerações de artistas
acadêmicos brasileiros são formadas. Em suas obras, davam vida e cor a
importantes passagens da história nacional: momentos de esplendor da corte,
cenas de batalhas e a glória do exército ganham contornos épicos na visão dos
artistas. A figura do índio surge nas telas como herói nacional. Era nos
grandes salões anuais que eles expunham o resultado de seus estudos. Os que
mais se destacavam nas competições eram premiados com medalhas e recebiam uma
bolsa para completar seus estudos em renomados ateliês da Europa. Ao retornar
ao Brasil, postulavam a vaga de professor titular ou substituto. Gradativamente,
a primeira geração de mestres estrangeiros era substituída por brasileiros. Os
princípios franceses de igualdade norteavam essa transformação: sem restrições,
a Academia se abria a receber os estudantes, independentes de sua origem social
ou da cor da sua pele. Um exemplo disso foi a importante presença de Estevão
Silva: negro, filho de escravos, que chegou a rejeitar publicamente uma
premiação das mãos do Imperador, que não fazia jus ao seu talento.
Passo a passo, a Academia vai se entrelaçando com o Brasil,
como raízes firmes que abraçam o solo, se misturando a ele e extraindo sua
essência. Impossível não se deixar levar pela grandeza deste verdejante país. O
calor dos trópicos e a luminosidade seduzem o olhar dos artistas,
sensibilizando sua paleta para os infinitos tons que nossa paisagem é capaz de
produzir. A natureza brasileira “não cabia nos manuais”. Era preciso levar o
cavalete até o bosque e se permitir sentir a mensagem que ecoava da mata,
advinda dos troncos, dos riachos, das flores e do canto dos pássaros.
A cada geração a Academia buscava mais e mais uma identidade
nacional, trazendo para o foco dos artistas o cotidiano, o folclore, as causas
sociais e políticas. Sobretudo, a Escola se permitia vivenciar ares de
modernidade e inovação, trazendo ao âmbito das discussões plásticas as
transformações da sociedade. Os tipos brasileiros, o caipira, o interior - os
caminhos vão se abrindo e a mentalidade começa a mudar.
A estética mudou... As técnicas mudaram... Os temas
mudaram... Novas linguagens são incorporadas... A cultura popular se torna
objeto de estudo e reflexão dos artistas e intelectuais. Com o passar dos anos,
a Academia foi se transformando, sem jamais abrir mão de sua importância e seu
papel. Os salões da tradicional escola se abrem para a modernidade, que cresce
vigorosa como uma árvore que se ergue ao futuro, mas com raízes fortemente
fincadas as suas origens.
Nessa terra de misturas raras, a bagagem clássica se
entrelaçou nas folhas das palmeiras, no canto das lavadeiras, se coloriu com os
tons da alegria e se fez carnaval. Basta olhar para a natureza do nosso povo
para fazer crer que a missão desta Academia era ser popular. Ainda no começo do
Século XX, o professor Rodolfo Amoedo tomou o pincel e emprestou sua arte ao
estandarte do Ameno Resedá: um lampejo de um grande casamento que viria a
seguir. Salve o casal Nery, professores pioneiros na aproximação desses dois
mundos, trazendo a viagem pitoresca de Debret ao Salgueiro de 1959! Salve
Mestre Pamplona, que, com a benção de Campofiorito, realizou esse encontro
entre os filhos da Academia e a arte do povo, guiando uma geração inteira de
artistas para as escolas de samba nos anos 60 do Século XX.
O clássico e o popular encontram abrigo no carnaval. Desde a
chegada da Missão em 1816 até hoje, o tempo moldou a Academia e abriu suas
portas à cultura nacional. O barracão da escola de samba tornou-se um grande
ateliê, onde arquitetos, pintores, desenhistas, figurinistas, realizam todos os
anos a “missão” de criar e recriar a fantasia do carnaval. É missão da São
Clemente, uma escola essencialmente carioca, eternizar na passarela esses mais
de 200 anos de arte e cultura dessa instituição moldada e emoldurada pelas
curvas sinuosas do Rio de Janeiro, que, amorosamente, carregamos em nosso
pavilhão.
Foram grandes as barreiras e desafios vencidos. Até mesmo o
fogo que atingiu a sede da EBA (Escola de Belas Artes) recentemente não tem o
poder de apagar sua história. É das chamas que ela há de se reerguer, como uma
Fênix que renasce: “quem chorava vai sorrir”.
Nessa ópera carnavalesca, nossa escola honrosamente
apresenta sua tese, para ser avaliada pela banca popular, saudando a história
da Escola de Belas Artes. Nossa defesa é o próprio desfile em si: ao adentrar a
passarela em 2018, a escola de samba da Zona Sul será a grande confirmação de
que era destino da EBA dar as mãos ao povo em forma de um carnaval
Academicamente Popular. "
Jorge Luiz Silveira
Carnavalesco
Nenhum comentário:
Postar um comentário