Madeira
Matriz
Autor: M. Ferreira.
Pelas campinas sob o vento quente do agreste
pernambucano. Céu esculpido por baixas nuvens emoldura muros xilogravados de
histórias vividas na memória de populares. A pequena São José dos Bezerros,
entrelaçada por animais passantes, eterniza em desenhos a sua história em preto
e branco. Passa seus ensinamentos a mãos de seus filhos de fibra. Chão de
inúmeros artistas que preenchem paredes vazias com suas lições. Luzir da
criação!
Trato o taco de umburana, vindo de Caruaru. Corto com um
formão, cavo com uma goivinha e risco com um buril (meio troncho). Traço em
matriz a “xilogravida” de um matuto que deu certo por esse mundo afora.
De reinos baianos, os primeiros símbolos gravados em
cartas de jogar, ato perpetuado na feira ecológica da minha Bezerrinhos.
Penduricalhos. Barracaria: palhaços-vendedores com balões; frutas nordestinas
exalando doce-mel; gaiolas repletas de galinhas e cabrinhas; piões esculpidos
em louro-canela; o colorido rubro-terroso da cerâmica dos grandes mestres do
Alto do Moura, mesmo barro que tinge águas margeantes do Ipojuca. A gritaria
dos folheteiros em barracas de cordel estampadas com o tempo de nossa não fácil
vida.
Esboço a aridez do chão em tapete verde que resiste e
adoça a vida em cor. Florir da palma, meio a seca castigada pelo Monstro do
Sertão, nosso alimento em tempos árduos… Mesmas mãos de arte na lida colheita
da cana, da quebra do milho, na acolhida aos ovos frescos da manhã ou no afago
do algodão. A mula traceja um caminhar de caçuás repletos de girassol-flor e
rosas da linda donzela sertaneja. Findo à tarde. Vejo distante pés ao chão e a
vida na cabeça, são muitos fujindo (com j mesmo) da terra seca… Solitária, ao
alto, acompanha-os: Asa Branca.
Primeiras estrelinhas raiadas ao fundo, em azul tênue do
céu. Valei-me meu querido Juazeiro do Norte! Sigo o aviso de Frei Damião: ser
um bom romeiro a tantas santidades católicas por mim gravadas, em especial São
José, nosso padroeiro protetor. A São Francisco, proteja-me às passaradas. A
São Jorge, não me vença os dragões. A Padim Ciço, os primeiros pingos de
esperança. Fé e picardia não podem faltar! O diabo e a mulher andam de mãos
dadas. A prostituta boa, quem diria, barganhou com charme sua vaga aos céus. O
carcará em voo perpétuo sobrevoa o bando de Lampião que, ao chegar ao inferno,
avista o casamento de seu supremo maior: Anjo-Mau.
Areal iluminado por linhas tracejantes de gambiarras,
pequenos pontos de luz. Ouço a rude batucada e cânticos de louvor a Xangô na
fina areia do agreste. Devagar. Brejeiros, os primeiros acordes do pífano rural
no forró da Serra Negra. Ordeno o som da embolada para as donzelas do Coco e
Ciranda. Nas cheganças, lindo cortejo de fitas e flores franzidas no balancê do
Bumba-meu-boi e Cavalo-marinho. Passo cruzado, brilhante perucaria da corte do
Maracatu Rural. Nas pequenas sacadas, Papangus comem xerém ao som do frevo e
cantoria. Os hômi se esconde das muié na sua rouparia. Baile armado: compasso
minha alegria!
Escavo a minha inspiração e moldo a máscara em papel
colè. Marco o debrum negro de formas aladas. Pingo antenas com auréola. Faço
uma fúlia (digo folia) com a borboleta encantada, pedacinho do meu Agreste…
Pincelo o verde, azul e deixo o branco como base. Entalho, assim, essa história
e a minha história, Rocinha!
De tema: Madeira Matriz. Preparo a tinta gráfica.
Prenso. Penduro.
Finco na barrinha: J. Borges.
Vocabulário Matuto:
Alto do Moura – Município de Caruaru.
Anjo-Mau – A figura demônio, satanás, diabo.
Barracaria – Muitas barracas, termo coloquial.
Buril – Prego de improviso.
Caçuá – Cuia de cipó da mula.
Campinas – Espaço terrestre do Agreste com pouca
vegetação.
Formão – Objeto cortante de mão.
Goivinha – Faca de improviso.
Ipojuca – Rio que corta o Agreste Pernambucano.
Louro-canela – Madeira leve.
Palma – Cacto do Agreste.
Serra Negra – Localidade festiva de Bezerros.
Umburana – Madeira nobre utilizada na xilogravura.
Xangô – Candomblé do Agreste pernambucano.
Joel – in memoriam, Nena, J. Miguel, Manassés, Ivan,
Givanildo, Pablo e Bacaro
(Clã Borges)
Severino Pedro e Fernando Acrízio
(Consultoria Cultural – Secretaria de Cultura de
Bezerros)
Prof. Henrique Pessoa
(Consultoria e Revisão Textual)
Gustavo Melo e Prof. Gilmar de Carvalho
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