Sinopse enredo 2018
Monstro É Aquele Que Não Sabe Amar
A ficção do monstro do Dr. Frankenstein nos coloca frente a
frente à nossa capacidade de repudiar o que é estranho e diferente, de negar
amor ao que não compreendemos.
O ser criado em laboratório a partir de pedaços de gente
costurados rusticamente, e da ausência de ética e de limites, não foi
reconhecido como um semelhante porque possuía aparência anormal e feia e,
acabou sendo excluído, repudiado e renegado pelo próprio pai.
A estranha criatura, abandonada, sozinha, incompreendida e
entregue a própria sorte, se transformou em anjo caído, revoltado pela falta de
amor.
Mas, quem é o verdadeiro monstro nessa estória? A criatura
de aparência repugnante, ou o criador, com seu egoísmo, seu orgulho, sua
arrogância e seu coração corrompido?
Essa obra vai completar 200 anos, mas tem muito a nos dizer
das diversas mazelas que atualmente corroem a integridade moral e espiritual de
uma sociedade onde a desigualdade se alimenta do descaso, formando uma geração
dominada pelo caos, vitimada pelo abandono e que vive a mercê de seres humanos
bestiais que menosprezam tudo e a todos que lhes parecem inadequados e fora dos
padrões estabelecidos.
O monstro do Dr. Frankenstein é a nossa realidade invertida,
é a nossa culpa escancarada e jogada em nossas caras, mas que da qual fugimos e
negamos qualquer responsabilidade. A criatura é o nosso espelho da vida
refletindo nossas falhas mais gritantes, nossa falta de amor com o que nos
cerca e com o próximo, e o nosso desrespeito às diferenças.
Somos parte de um sistema doentio, gerador de criaturas que
falam línguas diferentes e aparentemente indecifráveis para os governantes, e
que perambulam incompreendidas e esquecidas pelos becos, ruas e vielas dessa
selva de pedra que um dia já foi o paraíso.
Mas, o sonho de uma criança ainda é pintar o futuro em
folhas brancas da imaginação e traçar o mundo inteiro na palma da própria mão.
Porém o que vemos são crianças abandonadas pelos pais, longe das escolas,
vendendo balas nos semáforos ou se transformando em pivetes e disparando balas
de armas que cospem fogo e dor. Por sua vez, os filhos jogam os pais idosos em
asilos, feito fardos pesados demais, numa espécie de reflexo invertido.
É a carência de amor escancarada pela ausência de opção ou
pela falta de pão, levando irmão a matar irmão. São pedaços de família, soltos,
desapegados, sem ligação. São retalhos de uma sociedade refém de uma violência
cruel que corrói a nossa dignidade e espalha o medo que nos devora a alma em
cenas trágicas que passam diante de nossos olhos como um filme de terror,
retratando vidas que se perdem num instalar de dedos em cenários reais e
angustiantes. São as casas gradeadas, feito fortalezas de proteção, onde temos
a sensação que nós é que estamos na prisão, numa banalização do mal, do
sofrimento alheio e da própria vida humana, que transforma a luta diária, em
luto constante.
São os Cavaleiros do Apocalipse político, camuflados com
ternos, gravatas e hipocrisia, cavalgando no lombo da ambição e espalhando a
falta de esperança. São as filas, as falhas e falcatruas alimentando saúvas e
adoecendo a saúde; são zumbidos perdidos, sem direção, assustando a população e
matando o futuro na nação. É a paz escondida na tristeza de cada olhar, na
saudade doída dos que se foram, na fatalidade do silêncio dos que já não podem
chorar. É o refugiado da seca que ainda não encontrou a terra prometida; é o
brasileiro acuado, sem ter para onde fugir. Mas, na delação do “boca de sabão”,
certo e errado pode ser apenas uma questão de ocasião.
Será que há salvação?
Será que no final do túnel haverá luz?
Ou será que carregaremos eternamente essa cruz?
Sentado na escadaria, um pedinte estende as mãos implorando
esmolas, disputando com terços e santinhos a atenção de quem passa para se
ajoelhar diante do altar de ouro; numa encruzilhada adiante, aproveitadores da
boa fé despacham oferendas sem axé que servem para aliviar a fome e a sede do
morador de rua; enquanto falsos profetas, em templos colossais, cobram dízimos
celestiais, perseguem crenças diferentes, sufocam manifestações culturais e
fomentam uma espécie de “Guerra Santa”: o sagrado versus o profano, a batucada
proibida, a roda de samba coibida, a bebida no boteco; tudo é coisa do “coisa
ruim”!
Porém, tudo que se constrói ou se destrói, se começa pela
base, porque se não se fortalece a base, toda a edificação estará fadada ao
desmoronamento. E a base, a estrutura de uma sociedade é a cultura. É preciso
voltarmos às nossas raízes e nos reinventarmos. E se reinventar não significa
mudar a essência ou renegar as origens. Reinventar tem um quê de renascimento,
de tornar a ser criança, de redescobrir o poder de amar. Somente o amor e a
valorização da cultura impedirão que os monstros da nossa sociedade continuem
surgindo, se multiplicando e ameaçando o que temos de mais autêntico.
Cabe a nós sambistas, historicamente marginalizados e
excluídos, sempre olhados com estranheza e preconceitos, perseguidos pela cor
de nossas peles, pelo colorido de nossas roupas, pela nossa fé ancestral e pela
nossa batucada, o alerta, a resistência e o protesto. Algumas vezes nos negaram
a alma, outras tantas nos deram uma alma demoníaca, mas nunca conseguiram nos
calar, silenciar as nossas vozes e os nossos tambores, porque somos das ruas,
das praças, dos botecos, somos malandros boêmios e carregamos na alma a alegria
que debocha das dificuldades, mas, se for o caso, afogamos as tristezas com uma
cerveja bem gelada.
É chegada a hora de juntarmos os retalhos das nossas
consciências que deixamos no baú empoeirado do nosso comodismo e costurarmos as
fantasias dos abandonados e dos excluídos. Nesse cortejo popular, os
verdadeiros monstros da nossa sociedade desfilarão sem máscaras para serem
reconhecidos e malhados na quarta-feira de cinzas!
Que a Maria, a nossa Pietà, com seu filho nos braços e a
lata d’água na cabeça, seja o retrato da luta de todos que apenas desejam ser
amados e respeitados.
Que as ruas voltem a ser o grande tabuleiro da pluralidade
da nossa gente, onde as peças dançarão ao som de uma batucada democrática. Que
o nosso “rei” que é Momo, que é da folia, que é do povo, junte realeza e
“peões”, derrube a “torre” da intolerância e dê um xeque-mate na tristeza. E
assim, a Escola de samba e a comunidade, ali costuradas pelo amor a nossa
cultura, se tornarão um só corpo novamente e o samba triunfará mais vivo do que
nunca.
Que nesse arrastão de alegria, as drags e meretrizes
encontrem um amor de carnaval; o velho arlequim nunca desista de beijar a
colombina; o malandro continue caindo de paixão pela sedutora cabrocha e o
pierrot, levante a cabeça, dê a volta por cima e, dance apaixonado com a
passista formosa. Porque o samba é o palco mais democrático da nossa cultura
popular e une irmãos de todos os cantos e bandeiras, festejando as diferenças e
celebrando a paz sob um céu azul e branco.
Mas, se ainda assim você nos descrimina e não entende o
nosso jeito de ser feliz, não nos leve a mal, o monstro é você!
Largue o nosso carnaval!
Afinal, monstro é aquele que não sabe amar.
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