Namastê…
A Estrela Que Habita em Mim Saúda a Que Existe em Você
Carnavalesco e autor do enredo – Alexandre Louzada
Autor da sinopse – Fábio Fabato
Introdução
O início, o fim e o meio, quando olhamos para o alto,
são as estrelas. Aqui e em qualquer lugar do planeta. E é junto delas que mora
Kamadhenu, divindade que toma a forma de uma vaca sagrada e flutua na agitação
do oceano cósmico, mãe celestial, provedora da abundância. Segundo os escritos
hindus, lá de cima, com suas tetas abençoadas, jorra o leite, alimento primeiro
da vida, e consegue realizar todos os sonhos. Bem, o início, o fim e o meio
dessa história são formados por encontros que parecem escritos justamente nas
estrelas. A partir da Via Láctea, chamada de rio Ganges do céu, desce o líquido
da inspiração que irriga nossa escola e torna possível o congraçar de duas
terras. A bênção para o casamento começa no deus Brahma (início), então
adormecido no azul, e que desperta para conceber o universo todo. Depois,
aparece Vishnu (meio), a energia mantenedora dessa criação esplendorosa. Shiva
(fim), o deus da transformação de todas as coisas, a dança das possibilidades
do destino, energia que movimenta a invenção e a destruição do que existe,
completa a Trimúrti, trindade suprema que nos abre alas – à moda do que
acontece nos terreiros de samba. Eis a permissão superior para rufarem os
tambores de nossa festa, com Rama e Sita nos cuidados para a perfeita harmonia,
e Ganesha, força contra os obstáculos, sinalizando evolução livre nessa Avenida
da utopia real. Hora de abrir a cortina do passado.
Sinopse
Namastê… A estrela que habita em mim saúda a que existe
em você
E vem então a clássica cena do navegante vidrado no mar
a ser desbravado. O início, o fim e o meio da jornada rumo ao desconhecido, ao
lado das estrelas, eram águas salgadas e bravias, a primeira imagem, e também a
derradeira, a dobrar a curva imaginária lá no horizonte. Ele se jogou. Por
descuido ou conveniência, o português errou o caminho rumo ao oriente na rota
das especiarias e foi dar, vejam só!, no litoral brasileiro, redescobrindo o já
descoberto por aqueles a quem, preguiçosamente, resolveu chamar de índios.
Velas ao vento, sem saber ou muito sábio (vá saber…), enamorou as partes
“Índias”– religiões, formações, culturas, desigualdades sociais e independência
suada – unindo-as, mesmo que com oceanos de distância. A pluralidade de tais
extensões permitiu a incorporação de valores, sabores, olores, salpicando
estilo indiano no cenário indígena natural. Já que sem a Índia talvez nem
houvesse este Brasil de agora, foi saudação fluida, gostosa, num troca-troca de
peculiaridades que se tornaram jeitinhos nossos. E o tempo tratou de gravar
n’alma.
“Namastê!”, a essência estrelada que habita em mim saúda
a que existe em você. Apesar de significar cumprimento, a expressão encantou-se
com a intenção de reconhecer o ser que existe no outro. E este Pindorama
tropical, convidativo e miscigenado viu brotar por cá um pouco mais de poesia e
identidade do que nos ensinam no colégio. Se daquela enorme porção de Ásia
ecoavam histórias de guerras, conquistas e amor – como a do palácio de pedras
preciosas que virou a mais bela prova do sentimento de um monarca por sua
escolhida – por aqui também brilhavam sagas verdadeiras ou fantásticas. Sim, os
nossos índios adoravam astros, transmitiam lendas, e havia no ar um etéreo
enlace geográfico já em flor. Prima-irmã da asiática flor de lótus, adereço de
Brahma, a vitória-régia nasceu da paixão da índia Naiá por Jaci, ou Lua, obra
divina de Tupã – o trovão supremo da criação, sopro da vida. A partir de
encontros assim entre crendice e realidade, e que redesenhavam – várias vezes à
força –, a natureza genética, social e econômica da terra antes virgem,
aconteceu o primeiro beijo com a Índia. E ele deixou um gostinho doce nos
lábios.
Fato é que a cana-de-açúcar veio encantadora de longe,
ganhou status de grande riqueza agrícola, motor do Gigante inda menino. E aí,
sem doçura qualquer, mas de um azedume dos diabos, impôs a estrutura desigual
da sequência – escravocrata por desviado princípio. “Ringe e range, rouquenha,
a rígida moenda” e, daqueles arranhões e ruídos que arrepiavam o engenho,
saíram o açúcar, a garapa e, como não?, a boa e velha pinga, fino da nossa
bossa. Além disso, a Colônia iria conhecer o poder das joias, da seda, danças,
e um curioso cheirinho bom que enfeitiçou o cangote da nobreza. Deu em
revolução na moda das sinhás que andavam sobre liteiras, algumas inspiradas no
transporte da elite indiana. O sândalo perfumou os leques que, no vaivém para
espantar o calor do Verão naquele precário e apaixonante chão, sopraram nova
essência para os movimentos históricos. E a chita virou marca, tecido porreta,
o belo e o feio no país que nasceu contraditório. Transitou na corte, no baixo
clero, virou discurso de quem tanto quer causar quanto desaparecer na multidão,
a depender da estampa. Vestido de princesa ou toalha de mesa, madame? Mas foi
justamente à mesa a maior das delícias do matrimônio que nos inventou,
reinventou e, é claro, danou de também recriar o que veio de tão longe.
Impossível não notar que a culinária brasileira versa sobre a nossa cultura tal
qual a música, os pincéis, os corpos em balanço. E a Índia não se intimidou
quando convidada a invadir o cardápio.
Ora, o comércio das especiarias nos entregou, no começo
de tudo, a pimenta-do-reino, a noz-moscada, o gengibre, o cravo, a canela. Ou
seja, nascemos assim, crescemos assim, somos mesmo assim, vamos ser sempre
assim – plenos de sabores e aromas que inspiram a arte e os costumes. “No
tabuleiro da baiana tem… Vatapá, caruru, mungunzá, tem umbu pra iôiô…”. E quem
há de negar que a Índia foi incremento para este paladar eternizado na voz de
Carmem Miranda? Já as frutas indianas viraram autênticos discursos de um Brasil
que, mais à frente, se quis grande e bronzeado para mostrar o seu valor. As
nossas morenas ganharam cor de jambo na praia, o coco – da cocada, cuscuz e dos
manjares – virou Aquarela, dádiva do tronco forte aonde Ary Barroso amarrou a
sua rede nas noites claras de luar. Mas nenhuma outra nos fez a República que
viramos, de democracia ‘vezenquando’ vacilante, quanto a banana. Yes, nós
temos! Para dar, vender, engordar e, quiçá, crescer. Inda houve três árvores
asiáticas que, de batuque em batuque, quem diria?, deram o toque de mestre à
receita do carnaval. A mangueira inspirou certa supercampeã Estação Primeira,
do verde e manga-rosa inconfundíveis. E o “Corta-jaca”, de Chiquinha Gonzaga,
que escandalizou os conservadores quando executado no Catete? Sim, ele é filho
da mesma jaqueira que encantou o voo seminal da Águia Altaneira de 22 carnavais
vitoriosos. Para completar, um obrigado do fundo do nosso quintal para quem, à
sombra da tamarindeira, caciqueou por dias a fio e, incansável, só foi parar na
cinzenta quarta-feira.
Já esta brincadeira não cessa agora. Prepare o seu
coração pro que eu vou contar: bem mais de século faz que, sob o mesmo signo da
transação com temperos, o boi Zebu indiano também cá desembarcou, sujeito e
predicado, valioso de tudo. Corcova alta ou cupim, cabeça no lugar, sábio
fazedor-pensador da vida, em nosso pedaço se pôs até a filosofar sobre os
homens – estes que, coitados, não sabem ouvir “nem o canto do ar, nem os
segredos do feno” – incapazes, portanto, de perceberem outro ambiente, que não
o da própria razão. O Zebu, pelo contrário, fez daqui o seu novo mundo, virou
brasileirinho, cultura popular, economia vigorosa e até poesia matuta. Quem não
sabe do formigueiro que picou o animal preguiçoso que só queria ‘cuchilá’ à
sombra do juazeiro? Do rio Ipojuca, mestre Vitalino consagraria o boi que veio
da Ásia na arte sertaneja, forjando e cristalizando do barro, com as mãos, a
imagem de um torrão do Nordeste que escorreu aos quatro cantos a partir do
fuzuê da feira de Caruaru. Sagrado para quem fica do outro lado do mar, o bicho
à brasileira é Guzerá, Indubrasil e, na criatividade das manifestações,
Mansinho, de Mamão, Bumba-Meu-Boi, Boi-Bumbá, ah…, e o que mais a imaginação
dessa gente puder tratar de misturar. Eis aí o nosso charme. E também destino.
Indeléveis.
Mas destino mesmo é o de sermos independentes, tal qual
a Mocidade, assim eternizada em pia batismal, palco desse casamento sem
fronteiras aqui. Gente é pra brilhar, para ser livre pelas veredas concretas da
paz, sábia senhora, via dos inquietos, dos sonhadores, dos inconformados diante
da desordem das coisas e desse mundo louco. A desobediência civil pacífica do
líder Mahatma Gandhi, que encontrou no calor da resistência não armada a senha
da liberdade de seu país, foi semente, perfume e tempero indianos de senhora
pregnância. E ressonância. Viramos, e fomos, e somos, e seremos todos Filhos de
Gandhi, cujo Afoxé exubera axé, e filhos do axé de nossos próprios mensageiros de
luz nacionais. De Betinho, com quem sonhamos em regresso no barco da volta,
passando por Gentileza e sua urbana poesia naïf saída do fogo, até Mãe
Menininha do Gantois, Chico Xavier, Chico Mendes, Dom Hélder Câmara, Abdias do
Nascimento, Irmã Dulce, Mãe Beata de Iemanjá… Tantas, tantos. Pinta o rosto,
meu amor, igualzinho ao que ocorre no milenar festival Holi, das Cores, na
Índia, que celebra o triunfo do bem sobre o mal. Chama todo o pessoal e manda
descer pra ver: hoje é carnaval!
Nesse fraterno banho-ritual de mitos em águas de
aproximação, Ganges então se funde com outro rio em igual medida abençoado,
nosso Rio de Janeiro, mas também de fevereiro, março, abril – do famoso
requebro febril – semeado pela velha Guanabara mater por onde um dia desembarcou
o navegante que partira com olhos de cobiça. Assim, voltamos ao começo, à
descoberta que se tornou mescla, e a história faz um círculo descrevendo a
simbologia da mandala, no girar da roda do tempo que nunca para. Eis o completo
entrelaçar de mensagens, sonhos e sagas de dois povos, Brasil e Índia, sob o
cuidado atento de alguém que, sagrado e superior, inclusivo e sincrético, nos
legou justamente a mensagem dos citados pacifistas e o autoconhecimento para
decodificarmos a gramática percussiva dos nossos corações, por vezes tão
vagabundos. Foi um profeta Maluco Beleza que nos contou certa vez sobre este
ser divino que é em si filosofia de vida para quaisquer recantos e crenças, sob
formas, feições e tambores variados. Alguém que, feito da terra, do fogo, da
água e do ar, tudo vê e, mais longe: tudo é. A luz das estrelas, a cor do luar,
a mãe, o pai, o avô. O filho que ainda não veio. O início, o fim e o meio.
Fábio Fabato
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