‘Na Madureira
Moderníssima, Hei Sempre de Ouvir Cantar Uma Sabiá’
A Portela vai apresentar no
carnaval de 2019 uma homenagem à cantora Clara Nunes, ressaltando a
diversidade e a atualidade de sua trajetória biográfica e seu vasto
e plural repertório musical, constituído de sambas-canção,
sambas-enredo, partidos-altos, marchas-rancho, forrós, xotes,
afoxés, repentes e canções de influência dos pontos de umbanda e
do candomblé. Para isso, pretende sair do lugar-comum das narrativas
sobre sua vida ou de uma colagem de títulos de sua discografia.
Nossa escola exalta a importância cultural de Madureira, das festas,
terreiros e do contagiante carnaval popular, enfatizando a
contribuição do bairro para a formação da identidade que
caracterizou Clara Nunes: a brasilidade.
O meu lugar,
tem seus mitos e seres de
luz.
É bem perto de Oswaldo
Cruz*
Em 1924, no primeiro
carnaval da Portela, fundada em abril do ano anterior, o coreto de
Madureira, criado pelo cenógrafo José Costa, reproduzia a imponente
Torre Eiffel. Visitando o bairro na companhia de alguns amigos,
Tarsila do Amaral não apenas eternizou aquela imagem numa tela, como
também mostrou para seus pares modernistas que as festas populares
do nosso subúrbio incorporavam os mais diversos elementos culturais.
Sem dúvida, Madureira sempre teve um ar moderno, como a própria
trajetória de Clara Nunes, que parece ter emergido de uma obra
modernista, como se fosse uma tela da Tarsila: a Mineira representa a
mais plural expressão da brasilidade. Morena. Mestiça.
Porque tem um sanfoneiro no
canto da rua,
fazendo floreio pra gente
dançar,
tem Zefa da Porcina fazendo
renda
e o ronco do fole sem
parar**
Clara nasceu no interior
mineiro, num lugar que hoje se chama Caetanópolis. Ainda menina,
trabalhou numa fábrica de tecidos para conseguir sobreviver, mas seu
destino já estava traçado. Tinha como missão cantar o Brasil! Ao
longo da infância, conheceu de perto as tradições culturais e as
festas folclóricas interioranas, certamente recebendo influência de
seu pai, Mané Serrador, mestre de canto de Folia de Reis e violeiro
dos sertões das Gerais.
Sua brasilidade, como
herança de sua origem, sempre valorizou a diversidade regional de
nosso país. A voz de Clara fez ecoar os ritmos do povo, na saborosa
confusão dos mercados populares, seja do nordeste ou de qualquer
outro recanto desta nação.
Alçando voos mais ousados,
Clara mudou-se para Belo Horizonte, onde participou de concursos,
realizou os primeiros trabalhos artísticos e conquistou espaço nos
meios de comunicação. Chegando ao Rio de Janeiro, seguiu fazendo
sucesso e conheceu o misticismo que aflorava em Madureira,
incorporando-o à sua identidade.
Sou a Mineira Guerreira,
filha de Ogum com Iansã***
Até então, a artista
cantava principalmente boleros e sambas-canções. Após ter contato
com o ancestral universo afro-brasileiro de Madureira, a mineira se
transformou igual ao céu quando muda de cor ao entardecer. E nunca
mais foi a mesma: visitou os terreiros, quintais e morros de Oswaldo
Cruz e Madureira, vestiu-se de branco, incorporou colares, turbantes
e contas, cantou sambas e pontos de macumba. Seu repertório se
expandiu. A imagem de Clara evocando os Orixás, irmanada ao povo de
Santo, eternizou-se na memória de seus fãs. Ela se tornou a
Guerreira que não temia quebrantos, dançando feliz pelas matas e
bambuzais, sambando descalça nas areias da praia, unindo a essência
negra de Angola ao subúrbio carioca. E assim, sua voz rapidamente se
espalhou. Seu canto correu chão, cruzou o mar, foi levado pelo ar e
alcançou as estrelas. Uma força da natureza que brilhou como um
raio nos palcos e terreiros, iluminando o coração dos portelenses.
Nada disso foi por acaso.
Portela, sobre a tua
bandeira
esse divino manto.
Tua Águia altaneira
é o Espírito Santo
no templo do samba****
Desde que foi fundada, a
Portela tem uma presença significativa de elementos típicos do
mundo rural, trazidos pelo povo simples do interior, sobretudo do
interior de Minas Gerais, mesclados à negritude que vibrava em
Madureira. Talvez tenha sido por isso que a identificação de Clara
com a Portela foi imediata. Ela sempre ocupou posição de destaque
nos desfiles, é madrinha da Velha Guarda e até puxou sambas-enredos
na avenida. Ela e os portelenses, famosos e anônimos, sempre
caminharam de mãos entrelaçadas, voando nas asas da Águia.
Um dia, inesperadamente ela
partiu. Trinta e cinco anos se passaram desde então. A dor da
saudade sempre reverberou no coração de todos, tornando-a uma
estrela ainda mais cintilante.
Agora está na hora de a
Guerreira reencontrar seu povo mestiço, para mais uma vez brilhar na
avenida. Vestida com o manto azul e branco e a Águia a lhe guiar,
voa minha Sabiá.
Até um dia!
Carnavalesca: Rosa Magalhães
Sinopse: Fábio Pavão e
Rogério Rodrigues
____________________________________________
* O Meu Lugar – Arlindo
Cruz e Mauro Diniz
** Feira de Mangaio –
Glorinha Gadelha e Sivuca
*** Guerreira – João
Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro
**** Portela na Avenida –
Paulo Cesar Pinheiro e Mauro Duarte
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