Malandro é
Malandro, Bezerra É da Silva
1° SETOR - TOMADA DE
CONSCIÊNCIA
No alto do Morro do
Cantagalo a vida me apressa para mais um dia. Levanto como que num
susto e vejo da janela, como que numa moldura, aquela linha que
separa a cidade. Por mais que não se queira ver, existe uma linha
imaginária, repleta de concretude, que divide os que têm o poder de
fala dos que não podem ter voz. Do lado de lá, a beleza e os
direitos. Do lado de cá, o que se tem vergonha, o flagrante, o
inquérito. Essa desigualdade, alimentada todos os dias, está
refletida no que sou. Se não fosse o samba, eu não estaria aqui.
2° SETOR - O COTIDIANO DA
FAVELA ESCANCARADO
Inicio minha jornada e, a
cada passo descendo a ladeira, vou driblando a falta do que é
básico. E a cada drible, meu caminho vai se moldando. Encontro com a
rapaziada reunida, vinda de vários lugares, naquele burburinho que é
peculiar. Enquanto alguns se despedem para ganhar o sustento, outros
que estão de folga organizam o rega-bofe e nisso novas melodias vão
surgindo, os comentários dos últimos acontecimentos são
transformados em versos. Malandro de verdade é trabalhador e sábio
para transformar cada tropeço em samba. Esses são os meus
parceiros, meus olhos para aquilo que não consigo ver. E eu sou o
porta-voz.
E tem cada uma que vou te
contar... o malandro que tem de lidar com a sogra e que às vezes é
feito de televisão, quando a nega resolve lhe adornar com um par de
antenas, o bandido metido a bicho solto, miando na hora do sapeca
iaiá, dando com a língua nos dentes. Malandro de verdade aplica a
lei de Murici: cada um sabe daquilo que lhe convém, cada um sabe de
si. Até quando o mané é caloteiro ou está abusando da fé alheia.
Alô malandragem, maloca o flagrante e fica na atividade! O cotidiano
fica escancarado e a vida na favela vai seguindo seus ciclos...
3° SETOR - O ASFALTO
ESCANDALIZADO E A DENÚNCIA
Sigo adiante e, enfim, chego
ao asfalto. Aqui embaixo me acusam de defender bandido. Acho de uma
graça... Aqui, no outro lado da linha que nos divide, o povo do alto
partido, escandalizado, acha que tudo que é mazela vem da colina.
Condena nossa forma de pensar e de viver.
Vivemos aos pés dessa elite
que nos parasita e nos condena a viver eternamente na senzala. E quem
é o verdadeiro canalha? É aquele, doutor, é aquele senhor de
colarinho branco que age na clandestinidade. É também aquele
sujeito, cheio de caô, que aparece hoje pedindo meu voto e amanhã
manda a polícia me bater. Isso é Brasil e é isso que eu canto.
Digo cantando aquilo que, caso tivesse oportunidade, diria falando.
4° SETOR - O LEGADO/ MEU
SAMBA É DURO NA QUEDA
E isso é briga pra mais de
um. Sigo provando e comprovando a minha versatilidade, me juntando
com gente que é de verdade. E quem mais for de verdade pode chegar,
seja do samba, funk, rock, rap ou hip-hop. Seja do que quiser...
Ah, me perdoem pela falta
de gentileza. Prazer, meu nome é Bezerra da Silva. Meu samba é duro
na queda.
Pesquisa e texto: Mauro
Sérgio Farias e Raphael Homem
Carnavalesco: Guto Carrilho
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